domingo, 9 de março de 2014

Teatro que Cura e Teatro que Adoece



Foto: Silmara Silva



"Nenhum mal te sucederá, nem praga alguma chegará à tua tenda."
(Salmo 91)


          Este ensaio escrevo-o, para mim, e para o grupo que pertenço (Piauhy: Estúdio das Artes). Todavia, creio que pode contribuir de forma humilde com outros artistas e comunidades de pessoas que se dedicam a arte de construir sonhos pelos palcos da vida. Para meu ser, Teatro, tornou-se tão essencial como a fé, o amor, oxigênio e proteínas.  A poética teatral me serve de linimento, sem contra indicações, para os males do nosso tempo. Infelizmente, na proporção exata que existem teatros que curam, existem os que adoecem seus espectadores e construtores.

         O velho Stanislavski, um dos santos seculares do Teatro, bradava pelas salas de ensaios e camarins: “- Não ponham seus pés sujos de lama no teatro”.  Falava porque acreditava que o processo de construção e execução de uma obra de arte teatral era(e é) tão importante quanto seu resultado. Os grandes homens e mulheres das artes cênicas na contemporaneidade já acreditam nessa verdade. Tão precioso quanto o que o público vê é o que atores(izes), diretores(as) e técnicos vivem nos meses, por vezes anos, que antecedem  a apresentação do produto cultural.

        Numa sociedade depressiva, ansiosa, hedonista, profundamente egoísta, como manter os processos de construção de espetáculos a salvo das pragas epidêmicas do nosso meio? Impossível! Os grupos, coletivos e comunidades teatrais não podem ser encarcerados em bolhas de plásticos, imunes ao contágio de um mundo visivelmente doente. Esforço individual e conjunto fazem-se necessário no sentido de combater, ou pelo menos minimizar, os efeitos destrutivos das doenças emocionais e psicossociais que, não raro, atiram no monturo grandes perspectivas artísticas.

      Vaidade desmedida, invejas internas e externas, maledicências estúpidas, estrelismo exacerbado (motivado por busca incontrolável de sucessos efêmeros), agressões gratuitas e fortuitas, são sintomas claros que “a lama” não foi retirada dos pés ao entrarmos no Teatro. Emersom explicita: “- O que você grita tão alto em meus ouvidos que eu não posso ouvir o que você está dizendo”. Muitos coletivos e artistas não se reconhecem enfermos, aí não há solução possível, com o tempo, que tudo revela, os problemas aparecerão graves e irremediáveis, a doença se instalou no processo. Provavelmente, aquele trabalho construído com tanto esforço tende a desagregação.

       Como manter a sinergia nos grupos artísticos? Devemos acreditar  que o Teatro, como instituição milenar, é muito maior e mais importante do que nós individualmente. Nomes e imagens carregadas de caráter personalista devem ser substituídos por nomes e imagens completamente identificados com aquilo que representam, a arte teatral e suas inúmeras vertentes.

       Diretores(ou encenadores) vaidosos geram grupos vaidosos, Diretores preguiçosos produzem grupos preguiçosos, líderes e grupos ingênuos sofrem com grupos obtusos. A lógica não se esvai. Mesmo em grupos onde a criação coletiva é muito presente e a liderança não explicitamente definida, urge um líder que democraticamente, mas sem passar mãos nas cabeças, controle ou expurgue os malefícios ocasionados durante a feitura do trabalho criativo em equipe. Essa figura, geralmente, é representada pelo Diretor. Ele é o referencial na grande maioria das comunidades cênicas. Portanto, apesar de sua importância não ser maior ou menor do que qualquer um dos envolvidos no processo deve ser ele o principal responsável pela saúde dos coletivos de criação.

         Felizmente, mesmo em comunidades cênicas eivadas de pragas teatrais, é possível a criação de espetáculos de cura. Este continua sendo ainda um grande paradoxo e mais um milagre das artes cênicas.

         Por espetáculos de cura compreendo aquele que indo de encontro à subjetividade do espectador consegue construir a possibilidade de reencontro com caminhos existenciais mais frutificadores. Trabalhos que fazem com que seu público (re)pense seus destinos ou, simplesmente, o faça sentir-se parte integrante da grande irmandade dos seres humanos, são espetáculos curativos.

        Produtos culturais doentios no Teatro são facilmente identificáveis. O espectador defende-se, parte de uma posição de neutralidade para o escárnio barato ou vulgar com os que encenam a peça (Deus meu, quantas vezes me surpreendo chamando o trabalho dos colegas de porcaria, quanta falta de visão). Após apresentação de um espetáculo que adoece, a assistência traz na alma germes da desesperança, futilidade e até uma certa dose de perversidade.

        Homens e mulheres de Teatro não há possibilidade real de amarmos coisas elevadas na nossa arte e ao mesmo tempo fazer concessões a estultices(assim na arte como na vida. Tudo é vida). Porém, é sempre bom lembrar que todos têm o direito de serem ouvidos, isso é ser profunda e belamente humano. Nossa arte deve (re)transformar-se em elemento de cura social e individual como foi na sua gênese.

        Deixemos o Teatro que adoece, no processo e no produto, para os profundamente nugazes ou para os que por opção ou ignorância preferem as sombras da arte. Busquemos a cura.



Adriano Abreu
Final da estação das águas.

   

Um comentário:

  1. O texto me atraiu profundamente, como não pensar nessa onda que tenta comprometer o andamento de uma obra teatral ou mesmo tentar incansavelmente resistir nesse mundo que tenta a todo instante nos envolver com obras cada vez mais preocupadas com o "eu" do artista e não com a coletividade. Como pensar em comunicação se às vezes a porta parece fechada de uma das vias essenciais para diálogo ator/público. A dúvida que me veio lendo o texto vez por outra me faz divagar: como encontrar a cura na arte? Refletir parece ócio com esse pensamento que nos é ensinado de hiper produtividade, pois se vivenciamos essa imposição desde cedo como desconstruir a ideia de parar e refletir sobre os benefícios de nossa construção, quais os motivos que guiam atores ou grupos atolados nessa lama da não cura? Parar parece um desafio num mundo que exige movimento. São questões que me inquietam a alma diante das minhas experiências [poucas] com a arte.

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