Diálogos de Pedagogia Teatral
- No Terceiro
Diálogo analisamos o ofício do Diretor Teatral sobre duas perspectivas: pedagogo-diretor e diretor-como-criador, técnico e artista, empenhado em uma relação
dialógica com todos os componentes do ato cênico nos processos de construção de
produtos teatrais, bem como, na coordenação e formação continuada de equipes
criativas, utilizando como referenciais o nosso trabalho à frente do Coletivo
Piauhy Estúdio das Artes e o microcosmo Teatro Brasileiro de Expressão
Piauiense.
3º Diálogo
O
Trabalho do Diretor Como Ação Dialógica
“A minha convicção agora é muito sólida.
Por algum tempo eu não fui assim.”
Johann Pestalozzi
No Coletivo Piauhy Estúdio das
Artes, a principal tarefa do diretor (ou encenador como queiram), em suas
interfaces, como pedagogo e criador, é suscitar, propor e coordenar
dialogicamente, os artistas envolvidos no ofício de criar, num permanente
encontro com estéticas, dúvidas,
perplexidades e visões, estimulando, nesses agentes Estados Criadores. Antes de qualquer polêmica inútil gostaria de esclarecer
que não enxergo diferença ontológica
entre os termos diretor e encenador,
em detrimento disso, usarei os dois indiscriminadamente, realizando este devido
esclarecimento, não ferirei suscetibilidades. Outro ponto digno de nota é a
questão do pedagogo-diretor e do
diretor-como-criador, denominações que utilizo neste colóquio com intenções
meramente didáticas, já que essas duas funções
são indissociáveis, realizadas pelo mesmo sujeito, na multiplicidade dos
processos cênicos.
Célestin Freinet, educador francês, declara que é preciso semear nos
indivíduos, dentro dos grupos de trabalho,
a essa vontade da criação: “(...) Se os ATUANTES (grifo meu) não tem
sede de conhecimentos, nem qualquer apetite pelo trabalho que você lhes
apresenta, também será trabalho perdido enfiar-lhes nos ouvidos as
demonstrações mais eloquentes. Seria como falar com surdos. Você pode elogiar,
prometer ou bater... Os cavalos não estão com sede!”, ou seja, a equipe
criativa e, os entes que a compõem, ainda não se encontram prontos, a qualquer
ato artístico autentico, entre outras
palavras, o Estado Criador não se
instalou no ato teatral.
A expressão COLETIVO, ultrapassada
para alguns cultuadores do
individualismo hedonista, impõe-se cada vez mais viva no teatro que
vislumbramos. Nossa visão pedagógica e artística de encenador, preconiza, que
processos criacionais e formativos vigorosos, desenvolvam-se com maior
integridade, dentro das equipes onde as individualidades (não individualismos)
conseguem, de maneira coordenada e com profundo senso de compartilhamento (caracterizando
a dialogicidade), construir atos
cênicos valorativamente significantes.
Cabe ao diretor qualificar o agrupamento para realização das tarefas
propostas, conhecendo as necessidades
peculiares daquilo que escolheu como profissão, sem jamais tornar-se escravo de
uma estúpida vaidade (dele ou de seus dirigidos, ou quem saiba de ambos), como
o fazem, os diretores ideofrênicos
(ver 1º Diálogo), acreditando-se iluminados, perfeitos e incorrigíveis. Partindo da nossa investigação pessoal,
podemos afirmar, com razoável segurança, a existência de determinados princípios essenciais que fundamentam o metier do diretor teatral, entre eles, gostaria de frisar: aceitação crítica das condições materiais e
humanas colocadas à sua disposição na consecução da obra de arte, somados a um
esforço continuo e gradual para transformação dessas condições. Compromisso
moral e intelectual com a mensagem que deve ser re-passada a sociedade de forma
corporificada pelo conjunto dos produtos culturais criados coletivamente. Doação ilimitada (e amorosa) ao oficio de
construir fenômenos teatrais de qualidade. Aguçamento sensório-cognitivo,
emocional e espiritual, relativos a todos os aspectos que interferirão,
positiva ou negativamente, durante a construção de espetáculos, como também, na
condução dos grupos em situação de formação continuada. Solidez estética,
técnica e conceitual nas propostas e projetos que realiza. Capacidade de
liderar equipes criativas de forma democrática, mas não licenciosa, isso
significa, uma enorme habilidade e autoridade na mediação dos conflitos, que
acontecerão inevitavelmente, na condução dos trabalhos. O encenador alemão
Manfred Werwerth resumiria boa parte do exposto sentenciando, que o diretor
seria ao mesmo tempo um artista e técnico, “...
em vias de afirmar o que talvez constitua sua mais profunda vocação: ser um
educador popular”, para nós, um pedagogo-diretor.
Hamartía
é um conceito grego que significa erro de
julgamento ou erro por ignorância.
Nas tragédias gregas, uma forma comum de hamartía, era também
o pecado contra a hybris (aquele orgulho ou excesso de
autoconfiança que conduz os indivíduos a desobedecer os avisos divinos ou a
violar qualquer importante lei). A hybris conduz à queda
inevitável como punição pelo excesso de vaidade do herói. O diretor-como-criador,
uma interface não menos importante que a do pedagogo-diretor,
tendo em vista, comporem a unidade indivisível, deve possuir uma frieza cartesiana na execução de suas invenções, ou seja, deve duvidar, metodicamente, da eficácia das
suas soluções estéticas e conceituais, para não ser punido por desconsiderar a
hybris. Único detentor da tradução exata da linguagem empregada pela equipe
criativa no espetáculo, o diretor tornou-se, em muitos casos, a prima-dona do
teatro. Guindado historicamente a condição de figura mítica do fenômeno
teatral, o que o tornou, em muitos momentos, vítima
da sua própria condição, evadindo-se da realidade, diante dessa constatação, como nos ensinava Eurípedes: “- Aquele a quem os deuses querem destruir, primeiro deixam-no louco.” Embevecer-se
com a própria criação ou com seu suposto status quo, para nós encenadores é,
incontestavelmente, um ato de loucura. Neste caso, como antidoto para essa doença infantil da profissão,
prescrevemos relações dialógicas a
serem estabelecidas, pelo diretor-como-criador,
de honesta e incondicional humildade com sua própria criação e, consigo mesmo
em relação ao universo do teatro, pois
será ele que pagará, até o ultimo seitil,
pelas suas falhas trágicas.
Métodos pétreos e regras inflexíveis são pouco
eficazes para quem deseja enveredar pelo ofício de encenador que respeita os princípios essenciais da dialogicidade.
Isso não significa, em nenhuma hipótese, a falta de método. Conheço diretores
que conseguem conceber trabalhos relevantes partindo de intuições e pura
criatividade, no entanto, os grandes ícones da direção, sentem a necessidade, na
constituição de metodologias como arcabouços teórico-práticos que os auxiliam,
mas não os acorrentam, na invenção dos seus
teatros. No Coletivo Piauhy Estúdio das Artes os nossos esforços, como
diretor do grupo, estão voltados para duas frentes de atuação:
1ª A criação
compartilhada de produtos cênicos que contribuam efetivamente para evolução do
Teatro Brasileiro de Expressão Piauiense em todos os seus matizes, sem
esquecer, naturalmente, a necessidade da convivência das nossas obras com o
conjunto dos espectadores e tradições do Teatro Brasileiro. Isso implica, a
necessidade de estabelecer, relações
dialógicas com os grandes pedagogos-diretores
de todos os tempos, do Brasil e do exterior, bem como, aprofundar estudos e
pesquisas, sistematicamente, sobre a produção teatral e cultural mundial,
principalmente, a realizada no século XX e início do século XXI.
2ª Dedicação a “Formação do Atuante Numa Perspectiva de
Completude” (ver 2º Diálogo de Pedagogia Teatral), observando, as
necessidades individuais de cada um deles, integrando-os as visões
teórico-prática que passam a fundamentar a vida do Coletivo.
Essas duas frentes, que denomino de Movimentos de Ação Dialógica, sendo a 1ª
com o mundo sociocultural que envolve as artes cênicas e a 2ª relacionada a
formação dos atuantes (isso inclui outros artistas e técnicos como músicos,
maquiador, iluminador, etc), constituem, o que podemos chamar de metodologia,
que não é um fim em si mesmo, mas uma possibilidade de compreender, agir e
modificar realidades. Portanto, conhecer, socializar, organizar, implementar e
codificar conhecimentos, práticas e atitudes, apesar de ser tarefa de todos os
indivíduos da equipe, é obrigação do Diretor que incorpora a ação dialógica como práxis.
Uma forma elucidativa na conclusão desse
3º Dialogo, é a contribuição milionária do
poeta Manoel de Barros, que nos ensinou a importância das grandezas do ínfimo e, em seu magnifico poema “Uma didática da invenção”, onde nos dá,
quase sem pretender, uma aula perfeita de direção, a qual reproduzo alguns
fragmentos:
“Uma
didática da invenção” (fragmentos)
I
“Para apalpar as intimidades do mundo é
preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com
faca
b) O modo como as violetas preparam o dia
para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas
vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua
existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos
carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece
primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os
princípios.
II
Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia.
Ou
uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.
III
Repetir repetir — até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo (...)
(...) VII
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio. (...)
“Apalpar
as intimidades do mundo” é a síntese, exata e perfeita, do que é assumir
com maestria o sacerdócio da Direção Teatral e, o presente verso, descredencia este
ou qualquer outro ensaio sobre o tema.
Adriano Abreu
Diretor do Coletivo
Piauhy Estúdio das Artes
Estação da Seca