Dança Para Uma Atriz
“..., mas as casas não
são importantes.
As histórias que
habitamos é que importam. ”
Carta de Eugenio Barba a Jerzy Grotowski em 1°de junho de
1991
Pois
não quero falar da atriz, tão pouco de teatro, os quereres são inúteis por
vezes, gostaria de contar fragmentos do visto e vivido. Todavia, não se
enganem, não é um escrito sobre palavras, as palavras perdem o sentido quando
vislumbramos o mar abaixo de nós, um céu com poucas nuvens e pequenas porções
de terra no meio do Oceano Atlântico.
Quero
assobiar a cantiga para a atriz que dança,
não como um ballet convencional, mas como um veleiro recortando as ondas do
tempo iônico, ou uma andorinha costurando os hemisférios. O barco e as aves cheios
das lutas do mundo. Assobio a canção!
Recolho nas prateleiras do Teatro em Estado de Magia, ações repletas da sua
persona, pequenas notas dissonantes, vibrações na história onde moras,
ingredientes nas porções de cura e veneno, forjando uma coreografia, dessa forma, percorro tempos e espaços onde estivemos.
A
praça era pouco iluminada e a apresentação prejudicada pelo estupor da falta de
ritmo, a plateia pouco exigente, deleitava-se com o seu peixinho, não vi nada
capaz de cegar minha vaidade, sou um diretor de teatro, diretores podem ser
comandados pela violência do pedantismo, ou pela paz do reconhecimento da
exiguidade de todos nós, naquele instante, meu pedantismo venceu. Uma casa teatral
pode ser construída com muitos tipos de tijolos, porém, só ficará de pé, se for
cimentada com alguma pericia, era isso que senti falta em ti, pericia. Num
determinado momento, o seu sorriso ofegante na pele de uma Nossa Senhora, bela
e sofrida, na última cena do auto, mostrou-me os passos da atriz que já dançava, os tijolos precisavam do
cimento.
Ser clown
era sua primordial meta. Clowns são criaturas humanas que fazem opção por
habitarem em universos paralelos dessa realidade estúpida, um verdadeiro
palhaço assume uma condição análoga a própria existência, era esse teu desejo,
creio que seja essa sua verdadeira essência e, como sempre, foste a primeira
palhaça a assumir essa condição no estado mais pobre da nação, contudo, sua
inquietação é maior que qualquer cárcere, convenceu-se então: “Quero ser
Medéia! ”
As
escadas eram escuras, frias e fantasmas de atrizes imemoriais circulavam por
elas diuturnamente, mulheres que um dia
bailaram. Foi difícil para você
escalar aquelas escadas, era sexta-feira e a sua fotografia acordou estampada
em um dos mais importantes jornais do país, todavia, a estreia no dia anterior
tinha sido abocanhada pela tensão, que se não controlada, engole a arte e o
artífice. Esse monstro irá persegui-la por muitas eras, no entanto, naquele
dia, subiste muito mais que escadas, os fantasmas urdiram a apresentação em
colaboração amorosa, os técnicos do teatro sorriram satisfeitos, a plateia dançou junto e, seu espirito caminhou,
de mãos dadas com grandes atrizes pela Avenida Rio Branco, sem se importar com
o horror dependurado nas janelas dos edifícios, a tragédia e a comédia,
guardiões no telhado do Municipal, nos causaram vertigens, depois foste embora
de metrô, sem festas, autógrafos ou rosas vermelhas.
Asas de
borboletas, fustigamento, beber lágrimas, luzes azuis rompendo as costas, joelhos
esfolados, uma infinidade de nãos, evitar despedaçar objetos ou chutar portas,
a ira machuca o amor, ler cenicamente ou não, aceitar a limitação do outro e,
suas próprias limitações, sem se macular, prazer, proteção, pavor e busca da
liberdade. Qualquer um que vive como quem dança,
descobre o divino na arte, reconhece a necessidade de rituais, a incorporação
de sacrifícios no seu processo formativo, a complexidade do treinamento da
atriz, de qualquer atriz, extrapola a sala de ensaios ou os palcos, na verdade
atuadores não estudam para representar, vivem para aprenderem quem são, alguns,
em raros momentos, fazem Deus falar pelas suas bocas e corpos, tornando-se
santos seculares, outros, iludidos pelos esgotos de uma arte que prega a
miséria, viram excrementos teatrais e humanos. A sua formação minha peregrina
atriz, sempre será, revelação.
A atriz
é Lume na noite, ou um ser alado a dourar o dia com seus raios. O Farol observa
a boneca que oferece luz curando. O povo simples da periferia da cidade,
confessa pecados ao Anjo Barroco, o sofrimento do mundo não passa desapercebido
nos que contemplam em silencio. Imobilidade em movimento, ensinam os mestres
que é a mais poderosa e humilde das danças.
Quando o
ser possui uma oportunidade de mostrar qual sua profunda verdade, dimensionar
para o mundo sua real potência, deve procurar não falhar, se falhar não deve
sofrer e se sofrer não morrer, haverá sempre uma próxima vez, nas serras ou nas
ilhas distantes, a mulher-atriz deve continuar a respirar para sempre, as vezes
o peso da responsabilidade torna o sonho difícil, a vaidade dorme na mesma cama
do medo da reprovação, quem assume a dança-vida-na-arte,
tem obrigação, necessita acima de tudo, possuir coragem e equidade.
Outra vez
foste pioneira, agora na Hora do Ângelus, quando as janelas centenárias se
abriram pela primeira vez, para que um artista exercesse um ato cênico desse
local, uma atriz do povo, você, nascida e criada no morro, filha de empregada
doméstica, versejava Drummond para os transeuntes da Praça do Imperador, foi contemplada
pelos moradores de rua e pela alta intelligentsia da província, que ao
escuta-la, não conseguiu se livrar do nó na garganta.
Este
escrito é um reconhecimento ao seu valor, mas também, bussola e freio às
atrizes que aportam nessa dança-da-vida-teatro, pois se a morte nos abraçar
e nos afastarmos dessa convivência, por qualquer motivo alheio as poéticas, o
primeiro movimento desse solo já estará construído.
Como se
modela uma serva e rainha da arte? As fórmulas são inexistentes, contudo, os
princípios as guiarão. Existe um humilde legado as jovens atrizes da nossa
tribo, compartilho conforme você me mostrou: sejam capazes de influenciarem e
reinventarem o carnaval, construam pontes e atravessem pântanos de
desequilíbrio e sofrimento, não sejam sepultadas em vida pela pobreza, condição
familiar, pelos homens, saibam com quantas fortalezas a palavra opção é
construída e amem o teatro como a vida deverá ama-las. A suas aulas, lições de
carinho e pânico, sua história-dança começa
a virar caminho.
Na capela da
antiga fazenda de escravos você chorou tranquila e dolorosamente, insondável
aquele momento, os mistérios precisam permanecer, assim como esse pas de deux
que construí para nós, como se constrói um poema? E uma oração? Movimento!
Para atriz Silmara
Silva
Adriano Abreu, Diretor
do Coletivo Piauhy estúdio das Artes
Teresina, 2017