segunda-feira, 3 de julho de 2017

Dança Para Uma Atriz



Dança Para Uma Atriz


“..., mas as casas não são importantes.  
As histórias que habitamos é que importam. ”
  Carta de Eugenio Barba a Jerzy Grotowski em 1°de junho de 1991


                  Pois não quero falar da atriz, tão pouco de teatro, os quereres são inúteis por vezes, gostaria de contar fragmentos do visto e vivido. Todavia, não se enganem, não é um escrito sobre palavras, as palavras perdem o sentido quando vislumbramos o mar abaixo de nós, um céu com poucas nuvens e pequenas porções de terra no meio do Oceano Atlântico.
                  Quero assobiar a cantiga para a atriz que dança, não como um ballet convencional, mas como um veleiro recortando as ondas do tempo iônico, ou uma andorinha costurando os hemisférios. O barco e as aves cheios das lutas do mundo. Assobio a canção!
                   Recolho nas prateleiras do Teatro em Estado de Magia, ações repletas da sua persona, pequenas notas dissonantes, vibrações na história onde moras, ingredientes nas porções de cura e veneno, forjando uma coreografia, dessa forma, percorro tempos e espaços onde estivemos.
                   A praça era pouco iluminada e a apresentação prejudicada pelo estupor da falta de ritmo, a plateia pouco exigente, deleitava-se com o seu peixinho, não vi nada capaz de cegar minha vaidade, sou um diretor de teatro, diretores podem ser comandados pela violência do pedantismo, ou pela paz do reconhecimento da exiguidade de todos nós, naquele instante, meu pedantismo venceu. Uma casa teatral pode ser construída com muitos tipos de tijolos, porém, só ficará de pé, se for cimentada com alguma pericia, era isso que senti falta em ti, pericia. Num determinado momento, o seu sorriso ofegante na pele de uma Nossa Senhora, bela e sofrida, na última cena do auto, mostrou-me os passos da atriz que já dançava, os tijolos precisavam do cimento.
                Ser clown era sua primordial meta. Clowns são criaturas humanas que fazem opção por habitarem em universos paralelos dessa realidade estúpida, um verdadeiro palhaço assume uma condição análoga a própria existência, era esse teu desejo, creio que seja essa sua verdadeira essência e, como sempre, foste a primeira palhaça a assumir essa condição no estado mais pobre da nação, contudo, sua inquietação é maior que qualquer cárcere, convenceu-se então: “Quero ser Medéia! ”




                As escadas eram escuras, frias e fantasmas de atrizes imemoriais circulavam por elas diuturnamente, mulheres que um dia bailaram.  Foi difícil para você escalar aquelas escadas, era sexta-feira e a sua fotografia acordou estampada em um dos mais importantes jornais do país, todavia, a estreia no dia anterior tinha sido abocanhada pela tensão, que se não controlada, engole a arte e o artífice. Esse monstro irá persegui-la por muitas eras, no entanto, naquele dia, subiste muito mais que escadas, os fantasmas urdiram a apresentação em colaboração amorosa, os técnicos do teatro sorriram satisfeitos, a plateia dançou junto e, seu espirito caminhou, de mãos dadas com grandes atrizes pela Avenida Rio Branco, sem se importar com o horror dependurado nas janelas dos edifícios, a tragédia e a comédia, guardiões no telhado do Municipal, nos causaram vertigens, depois foste embora de metrô, sem festas, autógrafos ou rosas vermelhas.
               Asas de borboletas, fustigamento, beber lágrimas, luzes azuis rompendo as costas, joelhos esfolados, uma infinidade de nãos, evitar despedaçar objetos ou chutar portas, a ira machuca o amor, ler cenicamente ou não, aceitar a limitação do outro e, suas próprias limitações, sem se macular, prazer, proteção, pavor e busca da liberdade. Qualquer um que vive como quem dança, descobre o divino na arte, reconhece a necessidade de rituais, a incorporação de sacrifícios no seu processo formativo, a complexidade do treinamento da atriz, de qualquer atriz, extrapola a sala de ensaios ou os palcos, na verdade atuadores não estudam para representar, vivem para aprenderem quem são, alguns, em raros momentos, fazem Deus falar pelas suas bocas e corpos, tornando-se santos seculares, outros, iludidos pelos esgotos de uma arte que prega a miséria, viram excrementos teatrais e humanos. A sua formação minha peregrina atriz, sempre será, revelação.

                A atriz é Lume na noite, ou um ser alado a dourar o dia com seus raios. O Farol observa a boneca que oferece luz curando. O povo simples da periferia da cidade, confessa pecados ao Anjo Barroco, o sofrimento do mundo não passa desapercebido nos que contemplam em silencio. Imobilidade em movimento, ensinam os mestres que é a mais poderosa e humilde das danças.




               Quando o ser possui uma oportunidade de mostrar qual sua profunda verdade, dimensionar para o mundo sua real potência, deve procurar não falhar, se falhar não deve sofrer e se sofrer não morrer, haverá sempre uma próxima vez, nas serras ou nas ilhas distantes, a mulher-atriz deve continuar a respirar para sempre, as vezes o peso da responsabilidade torna o sonho difícil, a vaidade dorme na mesma cama do medo da reprovação, quem assume a dança-vida-na-arte, tem obrigação, necessita acima de tudo, possuir coragem e equidade.
              Outra vez foste pioneira, agora na Hora do Ângelus, quando as janelas centenárias se abriram pela primeira vez, para que um artista exercesse um ato cênico desse local, uma atriz do povo, você, nascida e criada no morro, filha de empregada doméstica, versejava Drummond para os transeuntes da Praça do Imperador, foi contemplada pelos moradores de rua e pela alta intelligentsia da província, que ao escuta-la, não conseguiu se livrar do nó na garganta.
            Este escrito é um reconhecimento ao seu valor, mas também, bussola e freio às atrizes que aportam nessa dança-da-vida-teatro, pois se a morte nos abraçar e nos afastarmos dessa convivência, por qualquer motivo alheio as poéticas, o primeiro movimento desse solo já estará construído.
            Como se modela uma serva e rainha da arte? As fórmulas são inexistentes, contudo, os princípios as guiarão. Existe um humilde legado as jovens atrizes da nossa tribo, compartilho conforme você me mostrou: sejam capazes de influenciarem e reinventarem o carnaval, construam pontes e atravessem pântanos de desequilíbrio e sofrimento, não sejam sepultadas em vida pela pobreza, condição familiar, pelos homens, saibam com quantas fortalezas a palavra opção é construída e amem o teatro como a vida deverá ama-las. A suas aulas, lições de carinho e pânico, sua história-dança começa a virar caminho.
           Na capela da antiga fazenda de escravos você chorou tranquila e dolorosamente, insondável aquele momento, os mistérios precisam permanecer, assim como esse pas de deux que construí para nós, como se constrói um poema? E uma oração? Movimento! 

Para atriz Silmara Silva
Adriano Abreu, Diretor do Coletivo Piauhy estúdio das Artes
Teresina, 2017