Teatro
Não É Questão de Gosto!
(Esterilidades, imprecisões e
superficialidades)
Assisti o espetáculo “Mãe In Loco” do grupo amazonense “Cacos
de Teatro”, segundo o coletivo um trabalho teatral livremente
inspirado na obra “Mãe Coragem e Seus Filhos” escrita em 1939 pelo teatrólogo,
dramaturgo e diretor alemão Berthold Friedrich Brecht. Para
inicio de conversa, considero o produto cultural em questão, um trabalho ligado
a uma vertente das artes cênicas denominada “Performance Art”. A diversidade
das manifestações cênicas na contemporaneidade justifica a colocação de “Mãe In
Loco” pelo importante projeto Sesc Amazônia das Artes na categoria teatro. As
coisas são o que são independentemente dos rótulos que possuem. Porém, esse não
é o único foco deste artigo.
O
problema foram as discussões travadas entre membros do “Cacos de Teatro” e
espectadores, no que deveria ser, apenas um bate papo, ao final da
apresentação. Diálogos eivados por uma atmosfera estéril, recheada de
superficialidades, equívocos e imprecisões de parte a parte. Vamos aos fatos e
possíveis elucidações:
O diretor do trabalho e um ator participante esclareceram que o apresentado
ilustra a pesquisa do grupo, onde os membros revezam-se na direção de solos dos
outros membros, onde o foco das investigações do coletivo seria o comportamento
do atuante em situações de risco, bem como, as relações cênicas
estabelecidas com o espaço, no caso uma piscina de lona plástica azul com
quatrocentos quilos de gelo triturado (representando a inóspita Antártida). O
mote para as ações seria o texto mencionado de Brecht. Até então tudo
aceitável.
Abrindo
a fase de questionamentos e observações o primeiro interlocutor perguntou sobre
a intertextualidade do espetáculo, com a peça do organizador do Berliner
Ensemble. Então, começaram as imprecisões. O diretor relatou brevemente o
roteiro do texto “Mãe Coragem e Seus Filhos” e afirmou que o segundo
intérprete em cena era o responsável pelo efeito de “distanciamento” e que o
épico estava nas ações da atuante. Declarou que o espetáculo já tinha realizado
incursões pelo exterior, modificando-se ou não, ao sabor das impressões e
sensações do público, a quem o grupo sempre ouvia de bom grado.
Definitivamente,
com todo respeito aos colegas do “Cacos”, o segundo atuante em nenhum momento
sinalizou o “distanciamento” citado. “Distanciamento” ou “estranhamento”
(verfremdusgseffect) como Brecht definiu é: “... uma técnica que
permite retratar acontecimentos humanos e sociais, de maneira a serem
considerados insólitos, necessitando de explicação, e não tidos como gratuitos ou
meramente naturais. A finalidade deste efeito é fornecer ao espectador, situado
de um ponto de vista social, a possibilidade de uma
crítica construtiva.”(ver Teatro Dialético) . No contexto do
espetáculo não foi possível identificar tal efeito. Nas obras cênicas com as
características da apresentada não caberiam os termos “distanciamento” ou
“teatro épico”. A intertextualidade residiu apenas no leitmotiv do espetáculo.
A
partir desse momento do “bate papo”, tomando emprestado uma expressão Stanislaw
Ponte Preta (Sérgio Porto), o FEBEAPÁ (Festival de Besteira que Assola o País) instalou-se no belíssimo Teatro do
Boi. Um espectador, atabalhoadamente, vociferou uma
série de críticas ao produto cultural apresentado e resumiu seu
descontentamento com um sonoro: “- Não Gostei!” O coletivo que
acabara de afirmar que escutava a platéia com real interesse e
serenidade, revelou-se descontente com o comentário, reagindo com indisfarçável
indignação e o típico sorrisinho defensivo e ranhento, lido nas entrelinhas,
como o salmo dos artistas incompreendidos: “-Hó meu Deus perdoai! Ele
não sabe o que diz...”
Um
cidadão partiu para defesa do grupo, relatou que tinha feito um
exercício de Viola Spolim, trabalhando a relação com o espaço cênico, concluía: “
Teatro não é mesmo para as pessoas gostarem; é para provocar.” O
coletivo adorou a defesa extemporânea do rapaz. Outro espectador procurou
contemporizar os ânimos, parabenizou o “Cacos de Teatro”, disse compreender os
prós e contras. Considerava o trabalho uma “coisa híbrida”, todavia,
entendia as razões do sujeito que não gostou , por que o trabalho não “possuía
emoção”. Declarou sua percepção de “alguma coisa de teatro físico”, elogiou
a atuação da atriz que “criou uma mãe do seu íntimo, ora jovem, ora
velha”. O descontente continuou irascível: “- Não
gostei, não me convenceu”, e outros comentários dispensáveis de
relato. O interlocutor que buscou harmonizar partes partiu com
microfone em punho para o proscênio na tentativa vã de explicar o inexplicável
para o reclamante. Finalmente, tudo acabou como começou, uma
tremenda gelada.
Poderíamos
acabar por aqui, todavia, tentaremos alavancar algumas questões relevantes. Nas
artes como na vida aprendemos sempre, nas luzes, mas também, nas sombras:
1. As
manifestações para teatrais (happenings, performances, work-in-progress e
demais estrangeirismos das cênicas) despontaram, principalmente, na Europa
e nos EUA pós segunda guerra. Atualmente essas manifestações
encontram-se em um certo declínio nesses lugares, dando lugar a outras visões.
Porém, florescem nos países ditos em desenvolvimento, são “vendidas”
aos incautos como “ultra-pós-contemporâneas”, o antigo é vendido como novidade
à multidões de artistas prontos a embarcar em qualquer nau de bobagens a busca
dos cantos de sereias das falsas novidades desde que possuam o brasão do
pomposo nome CONTEMPORÂNEO. Para tais representações cênicas o que valeria,
segundo seus defensores, seria um estado de fruição, ou seja, não faz-se
necessário a compreensão literal, objetiva, crítica, ou mesmo o encantamento
estético pelo espectador, mas sim o deixar-se atravessar pela subjetividade do
proposto pelos artistas. A premissa seria o sentir (como se fosse possível não
sentir), esse é o caso dessas “modalidades” cênicas, esse é o caso de “Mãe In
Loco”. Aparentemente nem o coletivo “Cacos de Teatro” nem o público presente
encararam desta forma.
2. Improvável
estabelecer qualquer relação possível entre as perspectivas da sistematizadora dos Jogos Teatrais (Viola Spolin) que são exercícios de improvisação
para atores (geralmente usados para iniciantes) e o trabalho
apresentado. Mais difícil ainda é compreender o paralelo traçado pelo
interlocutor e a afirmação: “ Teatro não é mesmo para as
pessoas gostarem; é para provocar.” Não pretendo sair da eterna
posição de aprendiz, onde estou por opção, mas permita lhe dizer, com
franqueza afetuosa, meu entusiasta artista, sua colocação é ingênua, anacrônica
e necessita de reestruturação. Sem pretensão de impor-lhe nenhum paradigma ,
gostaria de lhe propor a seguinte reflexão (caso leia algum dia este modesto
texto). Concordo, não devemos “paparicar” o espectador com belas mentiras,
nosso compromisso é com a verdade. Mas ninguém (de posse de suas faculdades
mentais) sai de casa e dirige-se a uma sala de espetáculos para ser
“provocado”, ou pior, para detestar uma apresentação. Manfred Wekwerth (também diretor do Berliner Ensemble) afirma,
e eu sou obrigado a concordar, “... a verdade no palco só será verdade
se aparecer aliada a sua irmã a beleza.” Creia meu caro, reside
no público a esperança no alumbramento, mesmo no horror. O espectador é parte
da cerimônia do espetáculo, tem direito a um produto cultural acabado, e
jamais, deve ser ignorado, vilipendiado com arrogância e estupidez pelo artista
cultuador de um mundo doente. Relembrando Brecht (Pequeno Organom Para o
Teatro): “É preciso lembrar mais uma vez que a tarefa do ator é
divertir os filhos da era científica, os espectadores, com sentimento e
alegria. Precisamos repetir isso frequentemente para nós mesmos[...] Nada do
que fazemos representa um esforço a alegria e para justificarmos os nossos atos
não invocamos o prazer que tivemos, mas sim, o suor que nos custou.”
3. As
colocações do cidadão que afirmou que “Mãe In Loco” era uma “coisa
híbrida(difícil imaginar tal coisa)” , estão maculadas pela
imprecisão, equívoco e contradição. Com a designação “híbrida” o
espectador, talvez, quis frisar o caráter performático da proposta, junção de
elementos inusitados na execução do trabalho (piscina de gelo, barulho de
xícaras, atmosfera e interpretações surreais), ainda assim a infeliz assertiva,
não explicaria a obra. As cênicas (teatro, dança, circo, performance, etc) não
são manifestações “puras” e já utilizam linguagens de outras manifestações
correntemente. Dizer que tal manifestação cênica é “híbrida”
tornar-se redundante e carece de aprofundamento.
A “experiência” sensorial da atuante com o gelo não
possui referência alguma com o “teatro físico”, apesar desse
conceito ter diferentes interpretações, contudo: “A definição
mais comum, onde todos concordam, é de um trabalho que coloca a fisicalidade do
artista cênico em primeiro plano no resultado estético final de uma
performance. (Victor de Seixas, Revista on line Mimus de Mímica e Teatro
Físico).” O que não foi notado em “Mãe In Loco”. Por fim, a afirmação
do espectador que o espetáculo não trabalhava a emoção e sua
posterior afirmação de que a atuante “criou uma mãe do seu
íntimo, ora jovem, ora velha” é, no mínimo, contraditória.
Necessário
e urgente repensar o “Teatro Brasileiro de Expressão Piauiense” diferentemente
das bases grosseiras do “gostei ou não gostei”, satisfiz ou não minha
subjetividade e crenças estéticas: “Todos os juízos de gostos são
singulares”. (Kant), tão pouco sobre os alicerces da imprecisão, falta
de fundamentação e “achismos”, comuns no percurso da curta formação
da nossa arte. Igualmente nociva uma visão academicista, vazia e ideofrênica
não ainda em voga no Piauí, mas comum em outros centros. Fundamental
lembrar a advertência do pensador George Lukács: “Uma arte que
seja por definição sem eco incompreensível para os outros – uma arte que
tenha caráter de puro monólogo – só seria possível num asilo de loucos[...] A
necessidade de repercussão, tanto do ponto de vista da forma, quanto do
conteúdo, é a característica inseparável, o traço essencial de toda obra de
arte autêntica em todos os tempos”. Por citar o essencial, apesar dos
“gostares”, essencialidade pura, para nós gente de teatro, e o que não existiu
naquele 18 de agosto no Teatro do Boi, foi um pouco de sabedoria e um pouco de
bom senso.
Adriano Abreu
Diretor do Piauhy Estúdio das Artes
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