Sobre Tristeza, Rigor e
a Vontade de Voar
“O ser humano
é semelhante a um anjo que, ao cair, perdeu uma asa.
Com uma asa
só, não consegue mais voar.
O que faz
então?”
Abraça-se ao
outro anjo que também caiu e perdeu uma asa.
Assim, um
completa o outro.
Abraçados, têm
novamente duas asas,
Superam a
crise, erguem vôo e conseguem voar;
Se não fossem
solidários e não se abraçassem, estariam perdidos. ”
Leonardo Boff
A tristeza do anjo é não poder voar.
Assim mesmo ele continua anjo.
A linha entre o solo e as alturas não
está limitada a ausência de asas. O que limita o vou é a tristeza, e a tristeza
é sempre displicente. Como encontrar asas perdidas cultuando tristezas que
furtam qualquer possibilidade de voar?
Talvez fosse a estação da seca, não
estou bem certo, pois esses fatos ocorreram há muitos verões, a única coisa
certa, é que armamos o circo no Distrito Federal. Quando a cortina se abriu não
houveram tristezas, apesar dos dois únicos espectadores que vieram ver o nosso
espetáculo. Continuávamos a voar, meio atormentados, é impossível negar, porém,
haviam asas e fazia muito sentido planar sobre a multidão de cadeiras vazias.
No outro dia, ao chegarmos
para apresentarmos nossa peça, havia um cartaz pregado na bilheteria cancelando
nosso planejado voo. Convencemos, com enorme dificuldade, o segurança a liberar
nosso acesso, atabalhoadamente entramos pela última vez no Teatro Dulcina de
Moraes para apanharmos as nossas tralhas, as mesmas que eram destruídas pelos
técnicos da casa ao retirarem nosso cenário daquele palco tão importante para
história da cena nacional. O que sentíamos não era desalento, era uma revolta
contida, adornada com misto de pavor e coragem.
Naqueles dias insólitos, muitas coisas
aconteceram, algumas a lembrança teima em relatar:
Um dos atores com o dedo do meio
em riste, em um magnífico gesto obsceno, saúda a estátua da justiça que reside
defronte ao Supremo Tribunal Federal. Foi nesse dia, algumas horas antes, que o
motorista do coletivo que pegamos para ver as maravilhas arquitetônicas da
cidade vociferou quando descíamos do ônibus: “Não sei porque esses nordestinos
imundos insistem em vir para Brasília passar fome. ” Um dos atores da troupe replicou: “Pior é a
tua situação que terá que carregar nordestinos até teus últimos dias. ” Os
passageiros que assistiam tudo até então calados, aplaudiram, foi um memorável
espetáculo. Mais tarde, na torre de TV
projetada por Lucio Costa, ouvimos um rapaz que nos foi apresentado dizer coisa
similar evidentemente de uma forma mais educada, ao que respondemos que não
fazíamos nenhuma questão de vivermos naquele lugar, as asas estavam firmes,
contudo, já não haviam voos.
Artistas de teatro são seres alados,
jamais devem rastejar nos lajeiros da ignorância. O rigor nos concede a
propulsão para decolagem e, como era rigoroso nosso diretor, tanto na cena como
no ethos, eu era ainda mais ingênuo em 1994, não conseguia entender a sensível
rudeza daquele homem. Impossível dimensionar a explosão de fúria do nosso
metteurs en scène quando uma atriz do grupo, comprou um frango assado escondido
e foi come-lo sozinha, trancada em um quarto. Aquilo que ele falou para ela, na
maior altitude da ira naquela ocasião, foi a maior lição de trabalho em equipe,
já transmitida a minha pessoa, em todos esses anos de arte. No entanto, naquele
instante, só consegui achar engraçado o choro contido e patético da jovem
atriz. A crueldade, no mais amplo sentido do termo, sempre fez e fará parte do
universo teatral, o amor e a paixão extremada também.
Na manhã do último dia, vimos
um espetáculo em um jardim, embaixo do bloco de apartamentos da Asa Norte,
exatamente no lugar onde estávamos arranchados. A peça era uma adaptação do
clássico Romeu e Julieta, feita exclusivamente para apresentações na rua, os
atuantes eram muito jovens, alguns ainda na adolescência, esses garotos e
garotas eram capitaneados por um diretor de idade avançada de índole bastante
jovial. Aqueles artistas eram impulsionados de um rigor estético impressionante
e, a pequena burguesia, desceu da tranquilidade monótona dos seus apartamentos
naquele domingo, entrou no jogo e voou com a acrobática apresentação que
relembrava a história de amor trágico mais conhecida do mundo. Não sei bem o
que se passou na cabeça dos meus companheiros de trabalho, mas pensei que como
seria bom se aquelas pessoas que aplaudiam felizes tivessem ido nos ver,
evitando o nosso retumbante fracasso. Nossas asas começavam a desaparecer. O
mal paira até nos momentos mais belos e a alegria nunca foi unanimidade em
nenhum lugar ou momento.
Anoiteceu e queríamos rasgar os
ares do Planalto Central, o cenário será o vão da Esplanada dos Ministérios no
conjunto arquitetônico criado por Oscar Niemeyer para abrigar o centro das
decisões políticas da República. O pano
de fundo era um show de Axé Music ofertado a população do DF, milhares de
pessoas se acotovelavam no gramado ressecado para ver e aplaudir as grandes
estrelas da música baiana, naquele evento de dimensões épicas presenciamos o
linchamento de um rapaz, ele era negro e muito jovem, aparentava ser de origem
humilde, seus algozes traziam as mesmas características, a plateia, bem
distinta do espetáculo do dia, também não podia intervir no drama que se
desenrolava, a Capital Federal apresentava sua face mais brutal, o único
sentimento que brotou foi a vontade de não estar mais lá.
Meses depois o grupo foi desfeito, nossa ida
para Brasília teve alguma coisa a ver com o acontecido? Creio que não. Num dia comum de ensaio o ator mais
experiente da equipe disse que ia viajar, o diretor não gostou, os dois
trocaram palavras frias e duras, uma semana depois nosso líder disse que iria
embora para França, apresentamos mais uma curta temporada daquele espetáculo
onde os personagens se confundiram com a vida real.
Restaram apenas as memórias, onde
apoiado numa certa retidão, reconstruí delicadamente essas asas e, voei para um
tempo, onde apesar de tudo, vivemos uma absurda sensação de completude.
Adriano
Abreu
Diretor
Teatral
15 de novembro de 2017 / Fim da
Estação Seca
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