domingo, 11 de outubro de 2020

Impressões do Ator, Dramaturgo e Consultor do Coletivo Piauhy Estúdio das Artes Eraldo Maia sobre o Projeto "O que há por dentro?"

 Introdução

            Em Rei Lear, Shakespeare afirma que “... se concedermos à natureza humana apenas o que lhe é essencial, a vida de humanos valerá tanto quanto a de um animal...”. Para o bardo inglês, é nossa vontade de supérfluo que nos diferencia dos outros bichos. E foi em concordância com o famoso dramaturgo e movido por esse sentimento, demasiadamente humano, de querer mais, de desejar mais, de sonhar vida “superfluamente” saudável para todos, que o Coletivo Piauhy Estúdio das Artes convidou trinta e dois artistas a cavoucar “no que há por dentro” e, quem sabe, garimpar, lá no fundo, as sementes que gestarão “Uma Poética para um mundo novo”. Em si mesmos genéricos, título e subtítulo da provocação propiciaram aos e às artistas que aqui se manifestaram, pensar, de modo muito particular, com quais ações e sentimentos poderiam contribuir para fazer florescer a tão desejada Poética. Seria uma Poética, cujas linhas, embora díspares em cores e gêneros, trabalhariam unidas pela saúde do todo? Seria uma poética cujas formas se tocariam de tal modo simbióticas e solidárias, que todos a reconheceriam como uma forma manifesta do bem? Seria uma Poética capaz de ler o presente e apontar responsáveis pela distopia que nos assola? Ou uma poética que, questionando o poder, nos aponta o caminho do verdadeiro viver sob um regime de comunhão? Talvez não tenhamos mesmo uma resposta segura, mas que importam as conclusões apressadas? O que, verdadeiramente, importa é que, ao nos voltarmos para dentro, estamos nos engravidando da vontade manifesta de encontramos, em nós mesmos, saídas para o impasse em que nos metemos.

            Ante a pronta resposta ao nosso preito, não poderíamos nos furtar de agradecer a todos pelo carinho e atenção com que nos brindaram e também de, com a vênia de todos, emitirmos impressões sobre o trabalho de nossos colaboradores.


Júnior Marks (ator e diretor de teatro), com a performance “ContorNU concreTU”, acredita que a verdadeira revolução está dentro de nós e nos propõe uma revisita ao que nos habita. Afirma Marks que é dentro de nós que moram todas as horas; é dentro de nós que habitam o Eu e os Meus; é dentro de nós que floresce a libido nos impulsionando à vontade de Ser... Ser... Ser.  Embora diga que está proibido florescer, Marks despe o homem e o põe a caminhar nu rumo ao desconhecido, apontando-nos que sempre haverá tempo e espaço para um novo recomeço.

Em “O último café”, Eraldo Maia (ator, dramaturgo e professor), utiliza-se de jogos semânticos para dialogar com a provocação que lhe foi endereçada. Na delícia do café escondem-se os dissabores de Zé; na dúvida de Rui, o fortalecimento das certezas de Zé; na esperança de Rui, todo o desencanto de Zé; na inocência de Rui, o amparo para a maldade de Zé. Enquanto para Rui a felicidade sempre será possível, para Zé só os que ignoram são felizes. Em meio a esse emaranhado de antíteses, Maia nos indica que uma feliz Poética para um mundo novo somente adviria do abandonar-se e deixar-se, assim, como em criança, não saber ou não saber-se.

Acorda-te, menina! Levanta-te, menina! Apela a atriz e contadora de histórias Talita Aralpe, em sua performance “Morada de Passarinho”. Essa menina que não quis crescer toca seu xilofone e clama aos quatro cantos por um novo despertar, acreditando que só a criança-passarinho poderá fazer do mundo, um ninho aconchegante para todos que nele moram.

Diz Leminski que Um homem com uma dor é muito mais elegante...  Talvez por revelar-se mais do que pretende, talvez por fazer-se mais humano do que ele próprio suporia. Em IZO-LADO-MENTE, a qual conclui fazendo-nos uma pergunta sufocante, o ator, palhaço e Drag Queen, Fagner Saraiva, reclama o tempo do abraço; abraço que apagaria o medo; abraço que nos faria plural; abraço que mataria a solitude que a todos nos apavora. Parece que para Saraiva, uma Poética para um mundo novo, seria alicerçada no reconhecimento do outro, no abraço do outro, no braço do outro.

O mundo é um útero, um grande e fértil útero, e a atriz Kelly Campelo é todo o mundo. Em sua performance “Corpo Político Povo mulher”, essa Gaya explosiva, Dama primeira do amor, abre-se generosa ao oferecimento de prazeres. E talvez seja mesmo nos prazeres sem trancas; nos prazeres sem amarras; nos prazeres aquecidos e movidos pelos requebros de um corpo-útero-mulher, que possamos encontrar os fios para o tecer de uma Poética para um novo mundo novo.

O Brado do ator e locutor Reinaldo Adriano, ao exclamar eu existo! É mais que um Desabafo em si. Existir pressupõe a presença do outro, a aceitação do outro, o olhar do outro. O espelho não nos enxerga, é a pupila do outro que se dilata e nos desenha, é o dedo apontado do outro que diz do nosso existir. Esse homem que congrega todas as cores; esse homem que se propõe despido de preconceitos; esse homem que deseja a imortalidade da essência humana, é o homem-mãe gestando uma nação de humanos siameses capazes de escreverem, a múltiplas mãos, uma Poética para um mundo novo.

O neologismo “Gorfus”, utilizado pelo ator, diretor e artista plástico Avelar Amorim, mais que nomear a performance do talentoso artista, expõe-no em vômitos. Na revelação do rosto que se despe da máscara, há um homem de vivos olhos e boca grande que golfa expulsando de dentro o desespero. Ao jogar para fora o que lhe é indigesto Amorim abre espaços, em seu ventre fértil, para um novo engravidar-se de descobertas e criatividades, que serão paridas em gorfus coloridos sobre a tela de uma nova Poética para um novo mundo novo.

A bailarina e jornalista Débora Radassi, na performance Por que tu me chamas? Corre ao encontro do desconhecido. Essa figura forte, feminina e desbravadora de futuros, vai. Mesmo incomodada por estranho chamado, a corajosa bailarina não se furta ao desafio. Há em seus passos o desejo de ter-se com o(a) outro(a), buscando, no encontro próximo, terreno fértil para a semeadura de uma Poética que revestirá de beleza os verdes campos de um novo mundo-novo..

Tudo é possível na surreal Receita democrática de Jujuba e Chicote (palhaço/a vividos por Chico Vinícius e Poliana Helena). Na sopa democrática de Jujuba e Chicote, misturam-se limões paridos de uma banana com ovos extraídos de uma maçã. Até mesmo uma vela gestada em uma cenoura seria bem-vinda à democrática Receita da alegria. Só não cabe o estranho e indigesto ingrediente, introduzido ali à revelia dos cozinheiros, por se tratar de um ingrediente avesso ao democrático sabor das sopas. Surpreendidos pelo aparecimento do indesejado ingrediente, nossos cozinheiros tomam a decisão mais difícil para bons cozinheiros: tocar fogo no livro de Receitas. A ação de Jujuba e Chicote nos alerta para a necessária tomada de decisão, antes que a democracia da sopa desande, afetada por algum estranho e indigesto ingrediente.

Assim como rios do Nordeste que hibernam na seca e renascem sob as chuvas, o ator ribeirinho Roney Rodrigues, nos evoca à luta com que se constrói uma existência. Com sua voz campestre ecoando sobre as águas do Marataoan e do Longá, Rodrigues reforça seu existir nos impelindo à defesa da cultura campesina e nos conclamando a que não deixemos morrer à margem nossas histórias. O artista nos aponta o passado como palatável sopa de letrinhas para a construção de uma nova narrativa que seria a chave mágica a descortinar um novo mundo novo.

A atriz Ana Carolina transgride os regramentos e, com a mesma tinta com que a melanina a contempla, picha angústias e dizeres pelos muros que a aprisionam. Aqui tem tijolos, e dentro de nós? Pergunta a atriz? A marca de sua mão formatada no barro - digital ancestral de uma guerreira ascendente - talvez queira nos dizer que ali sempre habitou a força da mulher. Barrada pelo “muro”, sufocada pela dureza do muro, a mão cravada no barro grita ao mundo: eu existo, eu sempre existi. Despida de vestes e reconhecendo a desorganização interna que a habita, Carolina extravasa, no ato infracional da pichação, seu gemido tantas vezes calado e nos diz que ainda não é hora de responder, mas de continuar perguntando: E dentro de nós, o que há?

O artista da dança, Datan Izaká, realiza em sua performance Carniças Sintéticas um lindo jogo antitético entre vida e morte. No mais precioso líquido, mistura de hidrogênio e oxigênio tão cara à vida, dançam carniças sintéticas: aves natimortas, marionetes manipuláveis, frutos de uma gestação fake, cuja vida só poderia vir a ser pelas ações de um artista. Só o artista pode fazer dançar pássaros mortos; só o artista pode fazer pulsar corações sintéticos. Não teria, Izaká, utilizado pássaros como metáfora para nos dizer que somos nós as verdadeiras carniças sintéticas, engessados e manipulados por um desenho de produção que nos anula o voo? Como todo bom artista, Izaká pergunta mais que responde, e isso é saudável à proposição de uma nova Poética para um mundo novo.

O ator e diretor Félix Sousa traz na performance “Saudade” a angústia de sentir-se só. São de cunho existencial suas interrogações iniciais: Para quê? Para quem? Se o teatro está vazio. Mais que ao vazio espacial, Sousa se refere ao vazio interior que habita o artista quando o outro não o aguarda. Mais que de solidão egoísta, Sousa fala da necessidade de enxergar o outro, do existir com o outro, do Ser para outro, elementos vitais quando se pretende alcançar uma Poética para um novo mundo-novo.

Assim como Sofia, ante as atrocidades da GESTAPO, o ator Dan Martins também enfrenta a difícil decisão de escolher entre possibilidades antagônicas e que lhe são tão caras. Em “Dilema”, Martins utiliza-se de breves monólogos e diálogos da “casta” social que o cerca, para nos fazer refletir sobre o ser artista numa sociedade que o vê como imoral e vagabundo. Ao parodiar Drummond explicita, Martins, outra faceta do dilema que o consome: permanecer na profissão escolhida mesmo sem a fama, o sucesso e o dinheiro tão esperados? E agora José? O Sonho acabou? São com essas reflexões que Dan contribui para o pensar na construção de uma Poética para um novo mundo novo.

Em sua Performance “Lembranças”, a artista da dança, Carla Fonseca, utiliza como Porta Voz de si o canto desafiador do Maluco Beleza: “... no momento em que eu ia partir, resolvi voltar”, diz a canção, enquanto a artista, desolada, em meio a um cenário vazio, debruça-se sobre Lembranças traduzidas em velhas fotografias. Ao nos dizer, por meio da canção, que aquilo é tudo o que lhe resta, como se a vida tivesse ficado no passado, e o presente não passasse de mero tempo vazio, Fonseca nos aponta para a necessidade de revisitar-se e encontrar outras fontes vitais de satisfação e prazer. Quem sabe, buscar no fundo do baú as velhas sapatilhas e com elas dançar para vida.

Em direção ao interior. É este o significado da palavra “Adentro” com a qual o ator e diretor Dionízio do Apodi nomeia sua performance. Ao utilizar-se dela como metáfora em dúplice diálogo com as imagens que nos propõe, Apodi convida-nos a abrir janelas no tempo e encontrar rotas de fuga à rotina burocrática. Ao revisitar velhos-novos motivos guardados a sete chaves, o artista nos convida a também fazer tocar a música que nos embala rumo ao interior de nós e dos nossos. Em sua fuga bucólica para fora e para dentro, Apodi nos diz que é preciso escapar pelas fendas do tempo, fazer-se sonho andante, e nunca parar de reescrever a Poética do amor.

Borrão de tinta nº 1 é a performance com a qual o ator e escritor Alisson Carvalho nos brinda. O artista despe-se de sentimentos ególatras e faz da tinta a protagonista de suas ações: chuva de tinta a fertilizar mão e mente criadoras; veios de tinta a regar o chão, estrelando em fractais a plataforma segura onde flutua a criação. Tinta casca, tinta invólucro, tinta útero, de onde, gestado, o artista-feto, rompe a placenta das cores, para desnudar-se, ao mundo em aquarelas.

Com apoio em Hampi, de Yma Sumac, o artista da dança Samuel Alvis nos apresenta sua performance Anticorpa. Em paisagem cenográfica escura, a figura do artista performa, sob a forte presença vocal de Yma, com quem dialoga e expõe-se dançante. Alvis não se deixa consumir pelo mundo e sua força devoradora; ao contrário, é ele, Alvis, quem o antropofagia para, digerindo-o transformar-se, transformando-o.

 Te espero em breve do outro lado da pele, diz Tânit Navarro na canção que ancora a performance “Era melhor”, da atriz Alê Matta. Entrando em comunhão com a textura da água, das flores, das folhas e experimentando as sensações que a bela canção evoca, Matta propõe-se a um diálogo com a natureza, deixando-se afetar pelo arrepio. Segura pelos muros que a protegem e vivendo com a cidade o fim de uma noite, que cede suas luzes ao fulgor do amanhecer, Matta espera, em breve, viver os ares de um novo amanhã, tecido por uma poética inspirada no sentido das coisas sentidas e que precisam, urgentemente, serem experimentadas.

A jovem atriz ,Gessy Rubim, evoca, em sua performance “Despedida”, as palavras da poetisa Cecília Meireles: Não ando perdida, mas desencontrada, para com elas despir-se diante de nós. Ao reconhecer-se desencontrada, Rubim acende a chama do procurar-se buscando forças dentro de si para o reencontro consigo mesma. Embora finalize sua performance pedindo solidão, a atriz não está a solicitar afastamento egoístico por impossibilidade de convivência com os outros, mas nos acenando com a necessidade de um instante seu, de um tempo seu com o qual possa pavimentar com novos e felizes encontros seu antes desencontrado caminhar.

Bad for you estampa a camiseta do performer Blu que, nomeia sua performance com o mais cruel dos cárceres “O cárcere mental”. Prisioneiro de si mesmo, emaranhado por fios que o ligam e o prendem ao nada, escravo da máscara que, arrancada de seu rosto, nos contempla inexpressiva, Blu, vive seu vazio às voltas com outras prisões. Talvez, sua grande advertência esteja mesmo estampada na camiseta que lhe protege o peito: se não melhorar para mim continuará também bad for you. Chama-nos, assim, Blu, a atenção para a necessidade de uma Poética que ao cuidar bem de mim, estará também a cuidar bem de todos.

O ator e diretor Rick Costa, propõe-se a dialogar com a provocação que lhe foi enviada nos perguntando: o que há por trás da máscara? Costa joga com a multiplicidade de rostos e nos mostra que sobre os mesmos olhos, muitos outros olhos podem nos compor; sobre o mesmo nariz, muitos outros disfarces nos contemplam; sobre a mesma face, muitas outras aparências podem se manifestar. Mas o que há mesmo por trás da máscara? Sob ela, tenha ela a aparência que tiver, há um homem, uma mulher; por trás dela, haverá sempre uma pessoa. Não importa se Brighella ou Arlequim; sob a máscara, mora um humano com o mesmo e universal desejo de ser feliz.

 A janela é um olho que olha o mundo, mas é também um olho por onde se olha o mundo. Helen Mesquita, trouxe para dentro de seu quarto o mundo, encerrando-o entre quatro paredes para nele procurar todos os abraços. Carregando e trazendo para si o desejo do encontro, essa artista da dança faz de seu quarto a Universa terra e vai colhendo dela todos os abraços que nela florescerem. Ao voltar-se sobre si, reconhecendo-se como um corpo em rotação, a acompanhar os movimentos desse tão caótico planeta azul, Mesquita é toda a gente, toda a gente em movimento, unida num longo, profícuo e nunca findo abraço.

Que rapaz é esse que estranho canto / Seu rosto é santo seu canto é tudo / Saiu do nada da dor fingida / Desceu a estrada subiu na vida / A menina aflita ele não quer ver / A guitarra excita pois é pra quê? O músico Caio Leon, parece ter buscado inspiração para sua performance “Correndo” na canção Pois é pra quê? de Sidney Miller. Calçando all star para sustentar-se no passo americano, ocupando tato, visão, audição com múltiplas e simultâneas tarefas, Leon expõe a desordem multifocal com que a contemporaneidade nos sufoca, impingindo-nos a nos repartirmos em pedaços para dar conta de tanta demanda. Sem tempo para o bom dia, sem tempo para a reflexão, sem tempo para ser feliz, só mesmo correndo. Corre menino, corre, corre, pois, No fim do mundo há um tesouro / Quem for primeiro carrega o ouro / A vida passa no meu cigarro / Quem tem mais pressa que arranje um carro / Pra andar ligeiro, sem ter porque/ Sem ter pra onde, pois é, pra quê?

Enclausurado entre muros, multiplicando-se por sobreposições de imagens, iluminado por uma réstia que lhe aponta um “lá fora” possível, o artista da dança José Nascimento talvez nos esteja a dizer que: por dentro há uma vontade incontida de voar, de romper todas as barreiras, todas as amarras que nos prendem; por dentro há um desejo de expandir-se em direção à luz e com ela voar. Por dentro há um artista múltiplo que luta dançando para ser e estar em muitos outros corpos. 

Ao som de um lindo solo de piano, o ator e cantor Edivan Alves nos mostra a performance Refugiarte. Com sua câmera passeando por agendas, mãos que dedilham teclas, teclado sem dedos que o acaricie, embalagens de comprimidos vazias, Alves nos mostra um traçado alegórico de seu cotidiano. Ao aportar sobre uma página ainda não escrita, estaria Alves apontando para o fim ou nos dizendo que há ainda muita história por ser contada? Ao plasmar câmera e dedos sobre uma folha em branco, estaria Alves a nos dizer que o que há por dentro é ainda incerto e impossível de se ler, por isso continuará buscando?

Tendo como fundo a cidade fantasma, a cidade sem alma, a cidade desumanizada, cenário que lembra um bairro devastado por arma química, a atriz Silvianne Lima faz, com sua performance, palavra-alma, veemente apelo à escuta, à necessária escuta de que tanto carecem negros, mulheres, indígenas, pobres e Lgbts; enfim, oprimidos em geral. Para a atriz, a palavra é Deus, mas se, como afirma o filósofo, Deus está morto, como então escutá-la? Em seu desesperado apelo, Lima nos adverte que se a palavra não voltar a dizer o passado não passará. Mas, para voltar a dizer, a palavra necessita de quem a escute. E quem escutará o canto dos excluídos se de tão excluídos já não mais cantam?

Eu evoco o sentido das coisas sentidas que precisam ser ditas. Eu evoco o sentido das coisas sentidas que precisam ser ditas. Eu evoco o sentido das coisas sentidas que precisam ser ditas. A reiterada expressão dita pelo ator e diretor Luís Carlos Shinoda, em “Notas para o novo mundo”, toca-nos a alma. E talvez seja mesmo esse o grande mote: a evocação do sentido das coisas sentidas, que nos moverá na direção da construção de um novo mundo novo. Para Shinoda e acho que para todos nós: amar, ser, aprender, cuidar são as coisas sentidas, e evocar seus sentidos, materializá-los em ações que os façam florescer deveria ser nossa grande luta. Transformar tudo isso no cuidar do outro e de nós, fará com que a esperança decantada por Shinoda se antecipe ao futuro e chegue agora, sem demora, na mais eficaz forma de cuidado: a empatia.

É bem-vinda e sugestiva a expressão Preta e Branco com que a atriz Bid Lima nomeia sua performance. Com ela, Lima nos aponta, à priori, para a ideia de apartheid entre humanos diferenciados por cor de pele e gênero. Não à toa a eficiente atriz utiliza a flor como metáfora para dizer que podem, sim, florescer pétalas pretas mesmo em solo contaminado por branquitude tóxica. Como vidas que crescem e florescem ao batuque ancestral dos tambores, essa flor-mulher-preta busca seu espaço rompendo o solo árido que o machismo paternalista e branco procura impor. Com “Preta e Branco”, Lima nos conduz a pensar que uma nova Poética para um mundo novo passará sim pelo reagir, pelo insistir, por não se deixar vencer.

Em sua performance “O saco”, o ator Reinaldo Patrício nos demonstra velha e abominável prática utilizada pela ditadura civil-militar de 1964, no Brasil. Após muito lutar, Patrício mostra-se capaz de vencer o objeto de tortura livrando-se dele, mas quando tudo parecia voltar à normalidade, e o sorrio já lhe visitava o rosto, outra vez é subjugado, mostrando que não venceu o torturador. Apelando para este final inglório, Patrício parece nos alertar que “os assassinos estão chegando, estão chegando os assassinos” e com eles suas práticas.  Acendamos os sinais de alerta, e lutemos juntos para que não encontrem por aqui espaço para atuação.

Em sua performance “Laika”, o escritor, dramaturgo, professor e palestrante ,Roberto Muniz, afirma que o que há por dentro é um enorme uivo em direção ao espaço. Contudo, Muniz parece “jogar” com a autenticidade do que lhe vai por dentro quando, propositalmente, deixa-se manipular por ordenamento exterior. Estaria o competente artista da palavra a nos alertar sobre forças externas que acabam por ditar o direcionamento de nossas ações? Estaria Muniz, chamando nossa atenção para a gravidade da marionetização de nossas vontades e desejos? Seria este “enorme uivo” um pedido de socorro do artista ante as exigências mercadológicas que nos conduzem a satisfazer-lhe o apetite em detrimento de nossas vontades?

A atriz, gestora e produtora cultural, Silmara Costa, com o ato performático “Dia 05, local de nascimento Américas”, incitou-nos a viajar pelo território América. Não por essa imensa gleba situada do lado de baixo do equador e escravizada por mãos europeias, mas pela América mulher, essa índia morena de útero fértil e beleza solar a banhar-se de sol sob as linhas do equador; não pelo território América, palco genocida do índio nativo, morto aos milhões pelo fio da espada, mas sim pela América menina que ameniza seu calor sob o veio de água a escorrer-lhe no sexo (sexo rio que alegra o sertão árido e violento do homem que a desama); não pelo território América sequestrado, roubado, depredado pelo invasor europeu, mas sim pela América amante, dama de coxas morenas orgulho latino da mestiçagem nossa. Que os deuses banhem-se nos rios de seus úteros e as engravidem de saberes e cidadania.


São Paulo, 04/10/2020, 17h e 32min.

*Silmara Silva, eis aí minha contribuição ao Coletivo Piauhy Estúdio Das Artes.

Eraldo Maia