segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Sobre a Memória, o Teatro e a Vida


Dedico este texto ao Centro Cultural da Barroquinha,
 local mágico, onde cometi este escrito por sobre as "ruínas da memória".



Sobre a Memória, o Teatro e a Vida

“Estas pedras se gastam com o tempo.
Vão lentamente se desgastando
e o tempo lhes sobra para as lembranças
que não conservam...”
H Dobal

            O conselho que os grandes mestres me deram é que quando o sentimento de insegurança invadisse a minha alma, eu deveria retornar as minhas origens, aos meus primeiros dias na arte.
            Como fazê-lo? Nestas “ruínas da memória” tudo parece entrecortado, as imagens vêm e vão, já não fazem mais tanto sentido, como naqueles momentos distantes. O mundo mudou, a cena não é mais a mesma e o homem em que me tornei não representa os anseios do passado.
             Lembro-me de um garoto vestido de papel celofane vermelho versejando “A Morte do Leiteiro”, auditório de escola lotado, deveria ser eu, talvez não fosse, tempos depois contemplei um casal de artistas representando a história de um sujeito que abandonando a mulher, alistava-se na Legião Estrangeira, e apaixonava-se por uma camela, recortes de um teatro ingênuo, hoje esquálido para mim.
             A primeira vez que fui a uma casa de espetáculos, dessas de cortinas vermelhas, refletores de verdade e palco de madeira, foi no desfigurado, mas ainda majestoso, Teatro 4 de Setembro, subi para o balcão no terceiro pavimento, não queria ser visto, temia que algo terrível pudesse acontecer, nada aconteceu, os atuantes vistos do terceiro piso pareciam anões, um deles imitava um cientista louco e em seguida uma leva de atores e atrizes gritavam palavras de ordem incitando a sublevação, tudo tão bonito dantes, hoje, apenas poeira de lembranças. 
              A cidade era Piripiri, sertão do Piauí, o ano não recordo, o adolescer ficara para traz, e a cena já fazia parte dos meus planos, porém, com frágeis convicções, quanto tempo perdido ou ganho em frágeis convicções? Acompanhava uma trupe teatral onde os artistas passaram boa parte do dia recolhendo galhos e flores, que comporiam um cenário improvisado, composto daquelas folhagens que certamente estariam murchas ao anoitecer. Contudo, naquela noite, veria uma coisa que impregnaria meu ser para sempre, o texto era as “Criadas” do genial Jean Genet, meu sentimento era que havia um profundo senso de ordem naquele incrível espetáculo, contrariando o caos da vida daquelas personagens. Ali, por entre flores murchas, vi três atores incendiarem a cena.
              Misteriosamente acabei trabalhando com aquele grupo por muitos anos, aprendi com eles, discordei, rompi com aquelas pessoas fantásticas, larguei o teatro, quando o grupo acabou, retornei ao ofício, fiz meu próprio caminho.
              Ainda me surpreendo, emocionado, com algumas  coisas que fiz e faço, muitas vezes não me reconheço nelas, são os enigmas desta prática mágica que é o teatro. Cometi mudanças existenciais radicais, magoei dilacerantemente pessoas, alegrei muitos com a minha arte, dei e destruí esperanças, o teatro é feito de coalizões e rupturas, amor e dor.
              Sempre lembro da humildade soberba dos grandes artistas que tive a honra de contemplar, aprecio o esgarçar do tempo me impregnando nos grandes trabalhos e, trago uma certeza; as luzes sempre se apagarão no final de tudo, nossos espectadores indiferentes, aborrecidos, enternecidos ou extasiados retornarão para uma vida que nós, gente de teatro, jamais reconheceremos como única.

Adriano Abreu
Diretor do Coletivo Piauhy Estúdio das Artes
Salvador – Bahia
2015

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