sábado, 1 de novembro de 2014

2º Diálogo A Formação do Atuante Numa Perspectiva de Completude



2º Diálogo
A Formação do Atuante Numa Perspectiva de Completude
“O problema que tenho que resolver, portanto, é este:
pôr em harmonia os elementos de qualquer arte
com o ser do meu espírito, pela observação das leis psicológico-mecânicas,
mediante as quais se elevam nosso espírito das intuições sensíveis aos conceitos exatos. ”
Johann Pestalozzi

           O violonista brasileiro Marcos Tardelli declarou em uma máster class de violão erudito, ao reparar o jovem artista de 12 anos de idade tocar uma canção de forma surpreendente: “- Todo talento é uma rampa abaixo.” Acrescentaria, a esta afirmação assustadora, que se esse talento não for realmente cultivado, inevitavelmente, será a tal rampa abaixo mencionada pelo genial músico brasileiro.
            O Teatro Brasileiro de Expressão Piauiense em detrimento das estruturas éticas, filosóficas, pedagógicas e estéticas, forjadas, durante todo seu processo de construção e sedimentação como manifestação cultural, através de modelos valorativos questionáveis e, na maioria das vezes obtusos, tem tratado o problema da formação do atuante como assunto irrelevante. Acreditamos, ou fingimos acreditar, que tudo é uma questão de talento; e os talentos, depois de usados e abusados (principalmente abusados), ao longo dos anos, através de um atroz processo de má-formação e, desenvolvimento incompleto de suas habilidades e competências artísticas, tornam-se apenas; manifestações de um silencioso desespero.
            A ausência da academia reforça esse quadro desalentador, porém, infelizmente, esta ausência não tem sido decisiva neste processo de-formativo. Digo, infelizmente, porque se instituíssemos um curso superior em Artes Cênicas, o problema nem de longe estaria solucionado, pois a questão, vai além do simples acesso a conteúdos acadêmicos. A experiência nos mostra que a formação de atores, atrizes e performers deve passar por permanente processo de ação/reflexão/ação, isso significa, uma vida dedicada a aprendizagem, movida por uma vontade ininterrupta de auto aperfeiçoamento, sabendo que você nunca estará pronto e, principalmente, imbuídos da consciência de que os modelos relacionais estabelecidos com o teatro, serão definitivos, para efetivação do seu produto cultural, harmonizando ou desequilibrando sua vida profissional e pessoal.
           Relacionar-se sugere perceber as conexões existentes entre suas ações, num determinado tempo e, os efeitos dessas ações, para além do tempo presente. Ilustraremos com um exemplo bastante polêmico na dita Classe Teatral e, por ser polêmico, fundamental para essa ilustração, já que, reflete essa relação de causa e efeito entre as escolhas vivenciais do atuante e seu ofício, imaginemos: um ator que utiliza-se de drogas meia hora antes de um ensaio ou apresentação, deseja convencer-se (e convencer aos outros), de que o uso daquela substância não irá alterar sua percepção e, consequentemente, seu estado psicofísico. Sem dúvida, o hipotético ator, estabelece um relacionamento hipócrita com seu fazer artístico, neste sentido, imprestável para um ato teatral autêntico; geralmente, denomino este modelo de atuante de Tartufo, pois como o personagem de Molière, considera que “não há pecado se este for escondido”. Espera-se de comportamentos questionáveis, pelo menos, que se assumam os riscos, de forma consciente, por tais comportamentos, ou seja, o atuante pode até dar-se o desfrute do consumo de substâncias psicoativas antes de ensaios e apresentações, no entanto, não queira convencer a si e a equipe criativa que tal atitude não alterará seu bios-cênico.
            Até que ponto vai a nossa liberdade de iludir, iludindo-se? Acredito, que um comportamento absolutamente honesto, entre o atuante e sua arte já é, um gigantesco passo, para re-valorização dos nossos atos teatrais. Portanto, para que sua formação não seja uma descarada mentira, não se faça de Tartufo.
         Shopenhauer afirma que a infelicidade provém de uma busca incessante por uma vida sem sofrimento. Tendo em vista, que o sofrimento é inerente a vida, assim como a alegria; dor e prazer passeiam de mãos dadas sob um dia de sol. Aceitar essa realidade seria uma maneira razoável de não adoecer por existir. Para o artista da cena o inferno é o medo da não aceitação a sua obra e, os Campos Elísios seriam os elogios a sua “grande arte”, até aí tudo bem, não fosse os problemas que esse tipo de atitude carrega.  Outro dia, assisti a um espetáculo realmente muito ruim, desses em que a gente entra na sala de espetáculos com a satisfação sempre esfuziante dos apaixonados pelo teatro e, sai pensando seriamente, em cometer um ato de selvageria contra quem montou aquela coisa, por favor, não me falem da liberdade de criação, a realidade nem sempre é condescendente com os autoproclamados politicamente corretos. O que mais me chamou atenção, naquela infausta encenação, foi o ridículo comportamento narcisista do protagonista da peça, o sujeito parecia um pavão despenado durante todo espetáculo e, ao cumprimentar os espectadores, ao final daquilo que ele, erroneamente, considerava uma obra prima de atuação mostrou-se um “ser-coisa”, que busca a todo momento o ideal, e foge do real.
           Comportamentos doentios de muitos artistas são frutos, entre outras coisas, de uma visão que privilegia processos formativos incompletos, onde o que importa é a satisfação de necessidades pessoais imediatas, e o preenchimento de vazios existenciais constantes, mais que o teatro. Atores, atrizes e performers estabelecem então, relações frágeis e superficiais com a arte, onde o que vale é a supervalorização da imagem e a busca de relações indolores com o fazer artístico, e quem procura a sabedoria, mais que o conhecimento sabe, que relações indolores inexistem na vida ou na arte, porque tudo é vida. Como um Narciso, à beira de um lago de ilusões, este tipo de “escolho” da nossa profissão, admira-se como ser único e inigualável, na vã tentativa de esquivar-se da dor de uma existência difícil, que cedo ou tarde, vai obriga-lo a suicidar-se nas águas da sua vaidade. Frustração e pertencimento, gozo e destruição, deleite e degradação, são partes integrantes de uma formação que prima pela completude. Nessa perspectiva, na sua educação no ofício da atuação, não imite Narciso.
       O ator e diretor Chiquinho Pereira, um dos grandes atores do Teatro Brasileiro de Expressão Piauiense de outrora,  afirmava, com muita propriedade, que para ser um bom atuante, faz-se necessário possuir uma cosmovisão, isso implicaria um artista da cena completamente integralizado em tudo que diz respeito a cultura humana, bem como, um indivíduo pleno de habilidades e competências psicofísicas e até espirituais, advinda de uma espiritualidade não vaga, ou seja, o teatro solicita sujeitos com amplas percepções do mundo aplicadas, naturalmente, a tarefa de atuar. Outro dia perguntei a um grupo de atores e atrizes o que lhes ocorria quando eu falava o nome Salvador Dali; uns disseram surrealismo, outros falaram relógios desmanchando e alguns falaram até na dimensão do sonho, etc. Umas das pessoas do grupo disse que não lhe ocorria nada, pois não sabia do que eu estava falando. A pessoa que, ingenuamente, fez essa declaração não é de forma alguma desprovida de inteligência ou talento, no entanto, fatalmente desconhece, não valoriza ou não foi estimulada a perceber a importância de uma formação cultural sólida, somada, obviamente, a um cuidado especial com seu aparelho psicofísico para a realização plena do seu trabalho. Eugenio Barba, um dos ícones do teatro contemporâneo, é taxativo ao afirmar que “o teatro não é lugar para diletantes”. Esta máxima, se seguida ao pé da letra, significaria que é exclusivamente sua responsabilidade tornar-se apto ao exercício profissional de ator, atriz ou performer. Caso não sinta-se capaz de plantar na sua persona essa cosmovisão, essencial a qualquer práxis formativa, pelo menos não sejam diletantes.   
              Woyzeck é um personagem de Georg Büchner (da peça de mesmo nome) que submete-se, por alguns trocados, a uma experimentação estúpida de somente se alimentar de ervilhas, tal procedimento, e uma vida desestruturada o leva a loucura, crime e suicídio. No teatro, é fundamental, para o processo de formação do atuante que ele saiba escolher os trabalhos que deve participar e as pessoas com quem deve desenvolver suas atividades. Muitos trabalhos cênicos não passam de verdadeiras armadilhas. Quando era ator participei de um processo de montagem frustrante, passei praticamente um ano “comendo ervilhas teatrais”, imerso em um momento da minha vida cênica que só me trouxe desapontamentos. Oito longos meses trabalhando com um elenco descompromissado, conduzido por um diretor que, da forma como começou os trabalhos continuou, valorizando mais as brincadeiras, bichices e futriquinhas do que a realização do trabalho criativo, até o feliz dia, que ganhei a porta de saída para nunca mais voltar.
          As práticas de montagens são momentos pedagógicos fundamentais, através delas, o atuante tem contato com a carne viva do teatro, neste momento privilegiado atores e atrizes poderão internalizar conceitos e atitudes relativas aos seus estudos e pesquisas teóricas, bem como, vivenciar experiências e conhecimentos de vários artistas. Conhecendo esta verdade, faz-se necessário, aprender a gerenciar a carreira no que tange a construção e realização de produtos cênicos, na minha opinião, essa é uma das essências do nosso ofício e um fenômeno educacional por excelência. Conheço gente de teatro que está no ocaso profissional, com trinta quarenta anos de palco, sem nunca ter montado nada relevante, como o infeliz personagem de Büchner, apenas submeteram suas carreiras a criaturas e propostas nefandas, que nada acrescentaram a sua educação e realização teatral. Esforce-se para consecução de objetivos nobres, com vidas dedicadas a arte, cercadas de pessoas cheias de nobreza, isso é o cerne do teatro. Procure, acima de tudo, alimentos mais substanciosos na sua formação teatral, não se torne um Woyzeck.
         Na imensidão que é o universo teatral lembremo-nos sempre do sábio conselho de Paulo, o apóstolo cristão, na sua belíssima Carta aos Coríntios: “- Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas me convêm. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não deixarei me dominar por nenhuma delas”.  Eis uma das chaves da iluminação, para quem procura mais a sabedoria do que o conhecimento, em uma existência dedicada a arte. Busque a claridade do trabalho árduo e fuja das trevas das facilidades. Faça de sua formação teatral um eterno encontro com todos os matizes da evolução.
         
Continua no 3º Diálogo
O Trabalho do Diretor Como Ação Dialógica

          
Adriano Abreu
Diretor do Coletivo Piauhy Estúdio das Artes
Estação da Seca




Um comentário:

  1. Nessa minha ida de aprendiz de ator confesso que já me vi diante de um pires de ervilhas teatrais varias vezes. Nem quero lembrar.

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