2º Diálogo
A Formação do Atuante Numa Perspectiva de Completude
“O problema que tenho que resolver,
portanto, é este:
pôr em harmonia os elementos de
qualquer arte
com o ser do meu espírito, pela
observação das leis psicológico-mecânicas,
mediante as quais se elevam nosso
espírito das intuições sensíveis aos conceitos exatos. ”
Johann Pestalozzi
O violonista brasileiro Marcos Tardelli
declarou em uma máster class de violão erudito, ao reparar o jovem artista de
12 anos de idade tocar uma canção de forma surpreendente: “- Todo talento é uma rampa abaixo.” Acrescentaria, a esta afirmação
assustadora, que se esse talento não for
realmente cultivado, inevitavelmente, será a tal rampa abaixo mencionada pelo genial músico brasileiro.
O Teatro Brasileiro de Expressão
Piauiense em detrimento das estruturas éticas, filosóficas, pedagógicas e
estéticas, forjadas, durante todo seu processo de construção e sedimentação
como manifestação cultural, através de modelos valorativos questionáveis e, na
maioria das vezes obtusos, tem tratado o problema da formação do atuante como assunto
irrelevante. Acreditamos, ou fingimos acreditar, que tudo é uma questão de
talento; e os talentos, depois de usados e abusados (principalmente abusados), ao
longo dos anos, através de um atroz processo de má-formação e, desenvolvimento incompleto de suas habilidades e
competências artísticas, tornam-se apenas; manifestações de um silencioso
desespero.
A ausência da academia reforça esse
quadro desalentador, porém, infelizmente, esta ausência não tem sido decisiva neste
processo de-formativo. Digo,
infelizmente, porque se instituíssemos um curso superior em Artes Cênicas, o
problema nem de longe estaria solucionado, pois a questão, vai além do simples
acesso a conteúdos acadêmicos. A experiência nos mostra que a formação de
atores, atrizes e performers deve passar por permanente processo de
ação/reflexão/ação, isso significa, uma vida dedicada a aprendizagem, movida
por uma vontade ininterrupta de auto aperfeiçoamento, sabendo que você nunca
estará pronto e, principalmente, imbuídos da consciência de que os modelos relacionais estabelecidos com o
teatro, serão definitivos, para efetivação do seu produto cultural,
harmonizando ou desequilibrando sua vida profissional e pessoal.
Relacionar-se sugere perceber as
conexões existentes entre suas ações, num determinado tempo e, os efeitos
dessas ações, para além do tempo presente. Ilustraremos com um exemplo bastante
polêmico na dita Classe Teatral e, por ser polêmico, fundamental para
essa ilustração, já que, reflete essa relação de causa e efeito entre as escolhas vivenciais do atuante e seu
ofício, imaginemos: um ator que
utiliza-se de drogas meia hora antes de um ensaio ou apresentação, deseja
convencer-se (e convencer aos outros), de que o uso daquela substância não irá
alterar sua percepção e, consequentemente, seu estado psicofísico. Sem
dúvida, o hipotético ator, estabelece
um relacionamento hipócrita com seu fazer artístico, neste sentido, imprestável
para um ato teatral autêntico; geralmente, denomino este modelo de atuante de
Tartufo, pois como o personagem de Molière, considera que “não há pecado se este for escondido”. Espera-se de comportamentos
questionáveis, pelo menos, que se assumam os riscos, de forma consciente, por
tais comportamentos, ou seja, o atuante pode até dar-se o desfrute do consumo
de substâncias psicoativas antes de ensaios e apresentações, no entanto, não
queira convencer a si e a equipe criativa que tal atitude não alterará seu
bios-cênico.
Até que ponto vai a nossa liberdade de iludir, iludindo-se? Acredito,
que um comportamento absolutamente honesto, entre o atuante e sua arte já é, um
gigantesco passo, para re-valorização dos nossos atos teatrais. Portanto, para
que sua formação não seja uma descarada mentira, não se faça de Tartufo.
Shopenhauer afirma que a infelicidade
provém de uma busca incessante por uma vida sem sofrimento. Tendo em vista, que
o sofrimento é inerente a vida, assim como a alegria; dor e prazer passeiam de mãos dadas sob um dia de sol. Aceitar essa
realidade seria uma maneira razoável de não adoecer por existir. Para o artista
da cena o inferno é o medo da não aceitação a sua obra e, os Campos Elísios
seriam os elogios a sua “grande arte”, até
aí tudo bem, não fosse os problemas que esse tipo de atitude carrega. Outro dia, assisti a um espetáculo realmente
muito ruim, desses em que a gente entra na sala de espetáculos com a satisfação
sempre esfuziante dos apaixonados pelo teatro e, sai pensando seriamente, em
cometer um ato de selvageria contra quem montou aquela coisa, por favor, não me
falem da liberdade de criação, a realidade nem sempre é condescendente com os
autoproclamados politicamente corretos. O que mais me chamou atenção, naquela
infausta encenação, foi o ridículo comportamento narcisista do protagonista da
peça, o sujeito parecia um pavão despenado durante todo espetáculo e, ao
cumprimentar os espectadores, ao final daquilo que ele, erroneamente,
considerava uma obra prima de atuação mostrou-se um “ser-coisa”, que busca a todo momento o ideal, e foge do real.
Comportamentos doentios de muitos artistas
são frutos, entre outras coisas, de uma visão que privilegia processos
formativos incompletos, onde o que importa é a satisfação de necessidades pessoais
imediatas, e o preenchimento de vazios existenciais constantes, mais que o
teatro. Atores, atrizes e performers estabelecem então, relações frágeis e
superficiais com a arte, onde o que vale é a supervalorização da imagem e a
busca de relações indolores com o
fazer artístico, e quem procura a sabedoria, mais que o conhecimento sabe, que
relações indolores inexistem na vida
ou na arte, porque tudo é vida. Como um Narciso, à beira de um lago de ilusões,
este tipo de “escolho” da nossa profissão,
admira-se como ser único e inigualável, na vã tentativa de esquivar-se da dor
de uma existência difícil, que cedo ou tarde, vai obriga-lo a suicidar-se nas
águas da sua vaidade. Frustração e pertencimento, gozo e destruição, deleite e
degradação, são partes integrantes de uma formação que prima pela completude.
Nessa perspectiva, na sua educação no
ofício da atuação, não imite Narciso.
O ator e diretor Chiquinho Pereira, um
dos grandes atores do Teatro Brasileiro de Expressão Piauiense de outrora, afirmava, com muita propriedade, que para ser
um bom atuante, faz-se necessário possuir uma cosmovisão, isso implicaria um artista da cena completamente
integralizado em tudo que diz respeito a cultura humana, bem como, um indivíduo
pleno de habilidades e competências psicofísicas e até espirituais, advinda de
uma espiritualidade não vaga, ou seja, o teatro solicita sujeitos com amplas
percepções do mundo aplicadas, naturalmente, a tarefa de atuar. Outro dia
perguntei a um grupo de atores e atrizes o que lhes ocorria quando eu falava o
nome Salvador Dali; uns disseram surrealismo, outros falaram relógios
desmanchando e alguns falaram até na dimensão do sonho, etc. Umas das pessoas
do grupo disse que não lhe ocorria nada, pois não sabia do que eu estava
falando. A pessoa que, ingenuamente, fez essa declaração não é de forma alguma
desprovida de inteligência ou talento, no entanto, fatalmente desconhece, não
valoriza ou não foi estimulada a perceber a importância de uma formação
cultural sólida, somada, obviamente, a um cuidado especial com seu aparelho
psicofísico para a realização plena do seu trabalho. Eugenio Barba, um dos
ícones do teatro contemporâneo, é taxativo ao afirmar que “o teatro não é lugar para diletantes”. Esta máxima, se seguida ao
pé da letra, significaria que é exclusivamente sua responsabilidade tornar-se
apto ao exercício profissional de ator, atriz ou performer. Caso não sinta-se
capaz de plantar na sua persona essa cosmovisão,
essencial a qualquer práxis formativa, pelo menos não sejam diletantes.
Woyzeck é um personagem de Georg
Büchner (da peça de mesmo nome) que submete-se, por alguns trocados, a uma
experimentação estúpida de somente se alimentar de ervilhas, tal procedimento,
e uma vida desestruturada o leva a loucura, crime e suicídio. No teatro, é fundamental,
para o processo de formação do atuante que ele saiba escolher os trabalhos que
deve participar e as pessoas com quem deve desenvolver suas atividades. Muitos
trabalhos cênicos não passam de verdadeiras armadilhas. Quando era ator
participei de um processo de montagem frustrante, passei praticamente um ano “comendo ervilhas teatrais”, imerso em
um momento da minha vida cênica que só me trouxe desapontamentos. Oito longos
meses trabalhando com um elenco descompromissado, conduzido por um diretor que,
da forma como começou os trabalhos continuou, valorizando mais as brincadeiras, bichices e futriquinhas do
que a realização do trabalho criativo, até o feliz dia, que ganhei a porta de
saída para nunca mais voltar.
As práticas de montagens são momentos
pedagógicos fundamentais, através delas, o atuante tem contato com a carne viva do teatro, neste momento
privilegiado atores e atrizes poderão internalizar conceitos e atitudes
relativas aos seus estudos e pesquisas teóricas, bem como, vivenciar experiências
e conhecimentos de vários artistas. Conhecendo esta verdade, faz-se necessário,
aprender a gerenciar a carreira no que tange a construção e realização de
produtos cênicos, na minha opinião, essa é uma das essências do nosso ofício e um
fenômeno educacional por excelência. Conheço gente de teatro que está no ocaso
profissional, com trinta quarenta anos de palco, sem nunca ter montado nada relevante,
como o infeliz personagem de Büchner, apenas submeteram suas carreiras a
criaturas e propostas nefandas, que nada acrescentaram a sua educação e
realização teatral. Esforce-se para consecução de objetivos nobres, com vidas
dedicadas a arte, cercadas de pessoas cheias de nobreza, isso é o cerne do
teatro. Procure, acima de tudo, alimentos mais substanciosos na sua formação
teatral, não se torne um Woyzeck.
Na imensidão que é o universo teatral
lembremo-nos sempre do sábio conselho de Paulo, o apóstolo cristão, na sua
belíssima Carta aos Coríntios: “- Todas as coisas me são lícitas, mas nem
todas me convêm. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não deixarei me dominar
por nenhuma delas”. Eis uma das chaves da iluminação, para quem procura mais a sabedoria do que o
conhecimento, em uma existência dedicada a arte. Busque a claridade do trabalho
árduo e fuja das trevas das facilidades. Faça de sua formação teatral um eterno
encontro com todos os matizes da evolução.
Continua
no 3º Diálogo
O
Trabalho do Diretor Como Ação Dialógica
Adriano Abreu
Diretor do Coletivo
Piauhy Estúdio das Artes
Estação da Seca
Nessa minha ida de aprendiz de ator confesso que já me vi diante de um pires de ervilhas teatrais varias vezes. Nem quero lembrar.
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