quinta-feira, 16 de abril de 2015

Ateliê de Atuação- Texto 2: Por que devo trabalhar corpo e voz para atuar? Porque sem esse corpo e voz lavrados você será um atuante com menores recursos expressivos.



Ateliê de Atuação

- Neste segundo texto do Ateliê de Atuação abordamos aspectos relacionados a preparação corpóreo-vocal do atuante: visões, reflexões e procedimentos.

Por que devo trabalhar corpo e voz para atuar? Porque sem esse corpo e voz lavrados você será um atuante com menores recursos expressivos.

        Antes do desenvolvimento de qualquer raciocínio, é necessário esclarecermos, a afirmação recorrente, por parte da maioria dos modernos teóricos do teatro, da existência de um corpo-voz realizador das tarefas diárias (caminhar, comer, sentar, conversar, etc), aquele que procura sempre o menor esforço energético possível, e a adaptação as rotinas individuais normalmente executadas. Esse corpo-cotidiano (termo amplamente utilizado pelo ator e diretor Eugenio Barba), também, é movido por uma série de injunções e sugestões socioculturais que fazem com que executemos, ações corpóreo-vocais, facilitadoras da aceitação e identificação com os grupos, valores, regras e situações vivenciais que nos torna parte integrante de uma comunidade. Essa configuração corporal e vocal naturalista, não corresponderia (segundo este pensamento), as necessidades das artes cênicas na contemporaneidade. Diante dessa informação, podemos inferir que existe um corpo-cênico e uma voz-cênica. Portanto, em contraposição a esse bios-natural (cotidiano), seria possível a construção de um bios-cênico, que segundo o mestre italiano, diretor do Odin Teatret, seria: “Uma qualidade de presença que estimula a atenção do espectador... um núcleo de energia, uma irradiação sugestiva e sábia... que captura nossos sentidos”. Esse corpo, utilizaria técnicas extracotidianas do corpo, onde as características principais seriam um “esbanjamento de energia”, “artificialidade crível” e uma presença marcante do atuante, capaz de atrair e dialogar de forma total com espectador mais exigente.
         Para Barba, esse bios-cênico, seria o corpo forjado em um treinamento pré-expressivo (como separar pré-expressivo do expressivo?), um corpo-voz ideal para representação, pois estaria liberto das imposições socioculturais, bem como, apto a realização de atos teatrais autênticos, através de gastos relativamente grandes de energia manipulada, conseguiria imprimir conteúdos simbólicos e vibracionais as suas ações cênicas.
        A prática tem me convencido, a impossibilidade da existência e construção de um bios-cênico 100% puro e eficiente, como também, tenho reparado, em algumas situações, corpos-cotidianos sem nenhum treinamento pré-expressivo, movimentando vibrações energéticas, conteúdos emocionais, imagéticas e simbólicos de alto teor cênico. Feitas essas considerações, podemos afirmar, que a distinção entre um bios-natural e outro, ideal a arte representacional (um bios-cênico), serve, indubitavelmente, como um excelente pré-texto para o atuante desejoso de estabelecer rotinas de treinamento corpóreo-vocal efetivas, no entanto, como em quase tudo na arte teatral, é necessário relativizar. Apesar da enorme influência e, das incontestáveis contribuições de Eugênio Barba, muitas de suas afirmações sugerem mais uma pragmática, utilizada eficientemente nos seus trabalhos, do que fatos irrefutáveis. Lamentavelmente, supostas “verdades absolutas”, são utilizadas indiscriminadamente e, sem as necessárias reflexões (e adequações), por parte de uma legião de artistas e grupos.  
          O fato irrefutável é que para um ator, atriz ou performer com amplas possibilidades físicas e vocais, conseguidas através de constante treinamento técnico-teórico orientado e fundamentado, torna-se, via de regra mais fácil, responder aos estímulos, problemas e situações expressivas com mais presteza e eficiência, que um atuante que ignore ou despreze tais necessidades. Utilizo para essa construção um termo na minha opinião mais realista, corpo e voz lavrados, aquele cujo sujeito-artista, através de intenso treino-criativo, consegue identificar e superar dificuldades físicas e vocais recorrentes na sua prática artística, como também, coloca seu corpo e voz disponíveis a um modelo criacional extremamente exigente, extenuante e, ao mesmo tempo, poético.
          Cada artista ou equipe criativa, possuem visões e necessidades especificas de trabalho físico-vocal, que irão de encontro as perspectivas, interesses, limitações e potencialidades daquilo que estão desenvolvendo como produto cultural.  O LUME, Coletivo Piauhy Estúdio das Artes, Oco Teatro Laboratório e a Pequena Companhia de Teatro por exemplo precisam, certamente, de treinamentos de atuantes diferenciados, pois suas verdades, visões, sonhos e demandas são diferentes. Todavia, existem princípios, aplicados em todos esses agrupamentos, nas suas preparações corpóreo-vocais, que serão semelhantes. Neste sentido, a lavratura corpóreo-vocal consiste em um trabalho sistemático e processual por parte dos atuantes em suas realidades criativas, onde através de um reconhecimento íntimo de seus desejos, objetivos, barreiras e ideais esculpem seus corpos e vozes, como artesãos-artistas, pois o que está em jogo é a capacidade expressiva e artística que sirva efetivamente aos seus atos cênicos e, não somente, um mero acúmulo de técnicas e habilidades. Lavrar o corpo e a voz é, acima de tudo, um exercitar o essencial, relacionando-os a uma visão de arte e a uma pesquisa teatral. 
        Trabalhar a fisicalidade do atuante, requer atividades grupais e individualizadas com foco em aspectos como: respiração, flexibilidade, força, precisão, resistência, conciência e controle corporal, diminuição do tempo de resposta entre estímulo e reação corporal,  etc.  Indispensável no trabalho vocal atividades de desenvolvimento da respiração, projeção, domínio, ressonadores, performance, ritmo, flexibilidade, intensidade, resistência, dicção, prosódia, concordância, etc. Todos estes trabalhos devem levar em consideração nuances menos objetivas dos que as citadas anteriormente mas que são pilares fundamentais dessa práxis, entre elas: energia, conteúdos simbólicos, história e necessidade individual de cada atuante e claro, integração com a pesquisa teatral desenvolvida. Fundamental salientar que corpo e voz devem ser trabalhados de forma integrada, tendo em vista, formarem um todo indivisível.
          As atividades, exercícios, jogos e laboratórios podem ser os mais variados, dependendo apenas das condições materiais, interesses e necessidades dos sujeitos-artistas envolvidos no processo de pesquisa cênica, podendo variar, da esgrima ao pilates, do wu-shu a prática do basquete, do canto ao gramelot, da dança clássica a contemporânea. O importante são os princípios que fundamentam a ação e as atitudes dos indivíduos perante as práticas desenvolvidas, que devem ser sempre de aceitação, espírito investigativo, humildade, prazer consciente durante as práticas corpóreo-vocais, como também, utilização do treino criativo como mediador entre o autoconhecimento e ampliação das possibilidades criacionais e expressivas.
          No Coletivo Piauhy Estúdio das Artes acreditamos que um corpo e voz lavrados, seria aquele que consegue corresponder as necessidades cênicas dos produtos culturais desenvolvidos pelo grupo de forma confortável, estabelecendo processos comunicacionais significantes com os espectadores e parceiros de cena, sem ruídos estranhos a essa comunicação, que é sempre sinestésica, imagética, vibratória, cognitiva e emocional.
         O campo da pesquisa corpóreo vocal do atuante em situação de representação é imenso e aberto, necessitando de artistas pesquisadores comprometidos com sua evolução, em geral, essa responsabilidade é atirada somente nas mãos do diretor ou professor.  Individualmente, é importante refletir, sobre o oportuno questionamento de Carlos Simioni (membro fundador do Núcleo de Pesquisa LUME): “Se a inspiração fosse a mão divina, teu corpo está preparado para receber a mão divina?”  Todavia, isso tudo, ainda é apenas uma pequena parte do ofício de atuar.   
Adriano Abreu
Diretor do Coletivo Piauhy Estúdio das Artes (fim da estação das águas do ano de 2015)

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Ateliê de Atuação (texto -1): Por Onde Começar? Pela Concentração de Suas Forças Criativas!





Ateliê de Atuação

- Corresponde a uma coletânea de textos sobre o trabalho do atuante, seus desafios, perspectivas metodológicas, proposições éticas, técnicas e filosóficas relacionadas aos princípios norteadores da produção do Coletivo Piauhy Estúdio das Artes.


Por Onde Começar? Pela Concentração de Suas Forças Criativas!


            Os atuantes que trabalham no Coletivo Piauhy Estúdio das Artes são persuadidos da necessidade de desenvolverem um método de trabalho atorial. Sabem, também, que a exigência primeira, o princípio e fundamento dessa forma de trabalhar é a Concentração das Forças Criativas de quem atua.
           A palavra metodologia (arte de dirigir o espírito na investigação da verdade) tem sido negligenciada por atores, atrizes e performers reiteradamente. Representar ou performar, para muitos, depende única e exclusivamente de talento, ideias pré-concebidas ou da frágil perspectiva da inspiração. Grotowski afirmava, e eu concordo nesse ponto integralmente com ele que: “... o teatro tem certas leis objetivas e que a satisfação está vinculada a obediência dessas leis...” Essencialmente, uma é indispensável, podendo ser traduzida da seguinte forma: “Na ausência de uma concentração inabalável por parte do atuante é praticamente inviável um ato cênico autêntico e transformador (grifo meu)”.
         Apesar da obviedade de tal constatação, faz-se necessário, algumas elucidações sobre a questão:
1ª A Concentração das Forças Criativas não acontece de forma automática (como um dispositivo plug and play), trata-se de elemento processual de difícil “instalação” e aquisição.
        Infelizmente, esse recurso metodológico usado de forma consciente como princípio norteador da função de atuar e fundamento essencial do trabalho cênico, não se “instala” ao bel prazer dos atores, atrizes e performers, pelo contrário, acontece por saltos quantitativos e qualitativos de acordo com as características de cada indivíduo somados a complexidade das ações artísticas a serem realizadas. Conheço alguns atuantes que começam seu processo de concentração horas e, até mesmo dias, antes do ensaio ou apresentação. Cabe a cada artista descobrir suas necessidades, limitações e potenciais para o fortalecimento e efetividade de sua concentração.
2ª Para concentrarem-se criativamente os atuantes precisam desenvolver algumas atitudes, competências e habilidades, portanto, tal capacidade não nasce com o indivíduo, ela   pode e deve ser “treinada”.
       Podemos afirmar que no campo atitudinal a aceitação das condições objetivas e subjetivas ao desenvolvimento da criação é mesmo condição indispensável para sua realização. No entanto, tal atitude de aceitação, não pode ser subserviente, isso significa que devemos sempre lutar por melhores condições para realização do ato criativo. Porém, se reagirmos, intempestivamente, as inadequações recorrentes no nosso ofício, melhor seria, abandonar o fazer artístico, tendo em vista, essas condições quase sempre estarem longe do ideal. Portanto, o que afirmamos, é que se no momento exato do desenvolvimento do trabalho criacional, imprimirmos nuances de rebeldia infantil ou exacerbação de uma criticidade ingênua, tal atitude dificultará, ou tornará inexequível a instauração de sua concentração.
        Ser competente para concentrar-se significa, entre outras coisas, ter prazer em resolver problemas de forma criativa, saber dialogar com o tempo e espaço cênico, bem como, com os demais elementos da ação teatral ou performativa, para tanto, o atuante deverá possuir uma certa resistência a fadiga, domínio e aguçamento dos sentidos e uma mente racionalmente aberta a abstração. Além disso, buscará introjetar no seu bios-cênico habilidades interpretativas mais profundas capazes de subjetivação e ressignificação, bem como, imaginatividade e intuição afinadas, que o levem a corporificar, corretamente, a mensagem a ser (re)passada a equipe criativa (no momento dos ensaios e laboratórios) e aos espectadores na apresentação pública do produto cultural.
3ª Esse fundamento, acima de tudo, exige integração de todas as energias psicofísicas, sensoriais para sua consecução.
      Compreendemos que qualquer desequilíbrio corporal, psicológico, sensorial ou precariedade na compreensão das reações e intenções exigidas na execução do objeto cênico a ser construído, não se coadunam com processo de aquisição da Concentração das Forças Criativas. Explicitando, podemos afirmar, que problemas físicos (como má preparação ou doenças), emocionais, resistência ou má interpretação aos estímulos inerentes ao trabalho, descrença ou desconfiança naquilo que faz, baixa estima, meio ambiente inadequado, etc, podem dificultar e inviabilizar a aquisição desse fundamento. Como podemos ver o problema da Concentração das Forças Criativas é bem mais amplo do que parece e, como em tudo nas artes cênicas, não pode ser reduzido a superficialidade.  
         Alguns atuantes dificilmente alcançarão um nível satisfatório de concentração, em virtude das dificuldades na compreensão e implementação das nuances citadas anteriormente, dificuldades reforçadas por estruturas de caráter que também prejudicam este elemento tão complexo. Pessoas excessivamente inseguras ou vaidosas, estarão constantemente pré-ocupadas no que os circundantes estarão pensando sobre eles, dificilmente conseguirão, estados de atenção e objetividade satisfatórios. Elementos que nutrem de forma contumaz condutas reativas ou um racionalismo sectário em detrimento do medo de perder o controle que supõem ter sobre suas personas, terão muitos impasses na aquisição da concentração criativa. 
       Concentrar-se nas cênicas é um “abandonar-se” a um encontro mais profundo com um ser indivisível que nada mais esconde, isso exige humildade, generosidade   e uma enorme dose de coragem. Denominamos ator-doamento este momento, em que o artista através da integralização de todas as suas energias, consegue transcender a si próprio. Nestes instantes sublimes o atuante está pronto a constituir-se na própria arte da qual é oficiante. Todavia, isso tudo, ainda é apenas uma pequena parte do ofício de atuar. 
Adriano Abreu

Diretor do Coletivo Piauhy Estúdio das Artes (fim da estação das águas do ano de 2015)